(o texto contém spoilers e interpretações do filme)
Walt Kowalski (Clint Eastwood) acaba de perder sua esposa e seu relacionamento com a família é péssimo. A casa ao lado agora é propriedade de uma família Hmong. E Walt é um racista e reacionário quer quer distancia dos asiáticos que beiram seu sagrado gramado. Thao (Bee Vang) e sua irmã Sue (Ahney Her), órfãos de pai, fazem parte dessa família que um grupo não fala inglês. O encontro de Walt e Thao mudará as vidas de ambos quando o jovem é obrigado, por uma gangue liderada por seu primo Sipder (Doua Moua), a roubar o Ford Gran Torino 1972 na garagem do idoso (carro que ele mesmo montou quando trabalhava em uma montadora). O plano dá errado e Thao é obrigado pela própria família a prestar serviços gratuitos para Walt durante uma semana. O convívio no início mostra-se complicado, mas Walt começa a ver algo naquele jovem e em sua irmã, mesmo que ainda que sinta ódio por imigrantes que, ao longo dos anos, “se instalaram” em seu bairro agora dominado por gangues que dirigem pelo local ameaçando livremente os moradores. Ao salvar Sue em um incidente, Walt vira uma espécie de herói involuntário para uma parte da comunidade Hmong, mas as coisas começam a piorar quando Thao e Sue são atacados. Walt percebe que a situação ficará cada vez mais incontrolável e que possivelmente o jovem acabará se vigando e destruindo a própria vida, e como diz Sue “as meninas Hmong vão para a faculdade e os meninos vão para a prisão”. Walt elabora um plano que poderá tirar em definitivo de circulação a gangue que atormenta a família de seu novo amigo.
Clint Eastwood possui uma incrível trajetória até o momento: ator por 66 anos, diretor por 50; ganhou dois Oscars de direção, mais dois de melhor filme (ambos por "Os Imperdoáveis" e "A Menina de Ouro"), em um total de oito indicações, e aos 78 anos dirigia este filme a partir do roteiro de Nick Schenk (“A Mula” e “Cry Macho: O Caminho da Redenção”, dois outros futuros filmes de Eastwood) que colheu grandes elogios da crítica sob um personagem que se apresenta sob péssima imagem aos olhos do espectador, que consegue dizer “Saia do meu gramado” e soar tão ameaçador quanto “Faça meu dia” (“Make my day”) - a célebre frase de seu personagem “Dirty Harry”), mas que vai conquistando a simpatia ao longo da projeção. Eastwood fez um filme que parece menor, parece uma história simplista, que parece ser contada de forma apressada, mas que sob sua aparente superficialidade apresenta aspectos bem interessantes, assim como nos descortina um painel de uma parte do povo americano. Walt lutou na Guerra da Coreia (1950-1953), recebeu medalha de bravura, mas carrega no peito amargura e ódio. Para ele todos os asiáticos e seus descendentes são iguais. Mais o destino lhe mostrará, no fim de sua vida, de anos de uso de cigarros, que ele ainda pode aprender, que ele ainda pode rever seus conceitos e que ele ainda tem utilidade.
Gran Torino é um filme cuja
versão legendada é mais indicada ao público brasileiro, pois muito das gírias utilizadas
por Walt tem significados racistas para com os asiáticos e nos explica que
muitas delas surgiram através das guerras onde os soldados americanos criavam
gírias para depreciar esses cidadãos. Vejamos: Walt chama os Hmong (vietnamitas
do sul que ajudaram os americanos na Guerra de Vietnã e precisaram fugir do
país, após os EUA abandonar o conflito) de “Gooks” (termo depreciativo para
pessoas de ascendência asiática principalmente filipina, coreana ou vietnamita.
O termo pode ter se originado entre os fuzileiros navais dos EUA durante a
Guerra Filipino-Americana); “Chinks” (termo depreciativo para uma pessoa de
nascimento ou ascendência chinesa); Walt chama a irmã de Thao de "Dragon
Lady" (termo criado na década de 1930 pelo Ocidente para descrever as
mulheres asiáticas que eram fortes, sensuais e dominadoras).
A política do insulto racial torna-se ainda mais complexa quando Walt leva Thao a uma visita ao seu barbeiro local, Martin (John Carroll Lynch). Quando Thao tenta reproduzir, a pedido de Walt, como os dois idosos “conversam” (através de “insultos amigáveis”), o barbeiro fica momentaneamente furioso. A lição é clara. Tudo só engraçado entre aqueles dois brancos americanos, um asiático insultado um americano perde a graça instantaneamente. Thao fica confuso. Esse é um momento que pode soar como irreal para o espectador, mas a realidade é que o filme tenta mostrar que o mundo de Walt é irreal (do ponto de vista de outras pessoas) e é nele que ele determinou viver. Os seus pares que o aceitam e "jogam o seu jogo" viraram (seus poucos) amigos e, provavelmente, foi ele quem os escolheu. Não por acaso seus amigos são pessoas de sua própria idade e comportamentos.
Mas Walt conservou algo por baixo da armadura: um senso de justiça, de combater o mal (que o levou à guerra) e impedir que pessoas mais fracas sejam dominadas pela violência. E isso mostra a ambiguidade do personagem. Ele começa a conhecer melhor aquela família, a conhecer seus dois jovens vizinhos. Vê que o tímido Thao é mais esforçado que muitos de seu bairro e que Sue é uma jovem muito inteligente e extrovertida. Ambos merecem a chance de desenvolverem seus potenciais, mais um bairro dominado por gangues, inclusive a do primo de Thao, não querem que os dois jovens estudem e trabalhem, querem arrastá-los para o meio em que vivem utilizando de força extrema e cruel. Walt não aceita injustiça. Ele lutou por liberdade e agora a vê sendo sufocada ao lado de seu jardim. Ele terá que fazer algo. E Walt tem algo ao seu favor: é astuto, é inteligente e se descobre doente, com provável pouco tempo de vida. Não quer definhar em uma cama, quer morrer no “campo de batalha”. Eastwood fez um filme em que tudo é muito implícito, todas as ações de Walt merecem uma reflexão mais profunda, por isso o filme ganhou tamanho respeito: um roteiro cheio de sutilezas e uma direção que nos mostra um filme aparentemente simples, mas apenas aparente.
Walt não acredita na absolvição católica pela confissão, na verdade não acredita em sua absolvição (ele mesmo diz que acompanhava a esposa na igreja apenas para agradá-la) e não se vangloria do que fez, muito em parte do que ele se tornou foi decorrente da guerra, e a guerra sempre é suja, horrenda e nada glamorosa como nos filmes. Walt sofre calado, sua esposa sabia disso. A dor se transformou em rancor e o rancor em ódio: ódio ao sistema; ódio às pessoas; ódio à falta de reconhecimento por combater pelo país; ódio por estar sem a esposa, a única pessoa que amou; repulsa à família que ele não soube como cuidar e agora esta não sabe como cuidar dele, desejando vender sua casa e colocá-lo em um asilo. Em determinado ponto descobrimos que Walt ganhou uma medalha por ter atirado em um jovem desarmado (o filme “Agonia e Gloria” ilustra bem esse assunto), mas destila "pecados menores" em sua confissão para que o jovem Padre Janovich (Christopher Carley), que julga nada saber sobre vida e morte, como ele descobriu na carne, "saia de seu pé", satisfazendo o desejo de sua falecida esposa de "desejar que se confessasse", liberando assim o padre da promessa feita a sua esposa.
Eastwood amplificou deliberadamente certas situações para criar incômodo na plateia (e conseguiu, inclusive com os asiáticos - ver curiosidades). É perceptível que pegou certas características de grupos de cidadãos radicais americanos (quem assistiu "A Baía do Ódio" talvez sinta-se familiarizado com o tema) e condensou em seu personagem para evitar espalhar a narrativa por diversos personagens / atores. Por isso Gran Torino é um daqueles filmes que não é apenas para ser visto, necessita que o espectador se acomode e se prepare para uma reflexão mais densa. É uma viagem de redenção do personagem e de ponderações para a plateia sobre tudo que se passa na tela. Houve e há muitos “Walt” no mundo, destroçados por guerras, com preconceito cegante, vindo em parte de memórias dessas amargas experiências; os “Walt” que se refugiam em seu próprio mundo; os “Walt” que rejeitam estrangeiros; os “Walt” que não conseguem se encaixar nesse mundo de constantes mudanças, os “Walt” em busca de uma salvação que não virá e os "Walt" que não veem nada demais em suas piadas racistas que atingem duramente outras pessoas.
O filme quis mostrar que não devemos discriminar pessoas pelo fato de não falarem nosso idioma ou possuírem aspectos culturais diferentes. Pessoas comuns não criam guerras, são os líderes que as criam. E que por trás de determinadas pessoas de comportamento, “intragáveis”, como Walt, há seres humanos com muita dor, culpa e ressentimentos escondidos. E que não devemos nos acovardar diante das injustiças, devemos buscar meios de combater o mal onde quer ele surja, seja com amor ou com ações. É um filme para se pensar, como muitos dirigidos pelo cineasta
Trailer:
Curiosidades:
Orçado em $33.000.000 e arrecadado mundialmente em torno de $269.000.000
A cadela de Walt, Daisy, é o adorado retriever da família de Clint Eastwood na vida real.
O filho de Clint, Scott Eastwood, apareceu neste filme como Trey. Ele é creditado em seu nome de nascimento, Scott Reeves. Scott não foi realmente reconhecido publicamente até 2006 - daí o nome.
Os escritores Nick Schenk e Dave Johannson conheciam alguns dos Hmongs perto da siderúrgica onde trabalhavam. Eles escreveram o roteiro em pedaços de papel durante os intervalos para o almoço.
A "medalha legal" que as crianças encontram no porão de Walt é a Silver Star, dos EUA Terceiro maior prêmio militar por bravura em combate. Apesar de sua cor predominantemente dourada, ele recebe o nome de uma estrela prateada menor (baseada na pequena estrela de citação prateada da Primeira Guerra Mundial) situada dentro da grande estrela dourada.
Em termos de bilheteria, este é o filme de Clint Eastwood de maior sucesso de todos os tempos, ambos nos EUA. e o Reino Unido, mas não com inflação. Levando em conta a inflação, seus filmes de maior sucesso são Doido para Brigar ... Louco para Amar (1978) e Punhos de Aço: Um Lutador de Rua (1980).
O nome do personagem de Clint Eastwood, Walt Kowalski, é o nome real do lendário lutador Walter "Killer" Kowalski.
Convocações para testes de elenco para atores Hmong foram realizadas em comunidades Hmong em Detroit, Michigan, em Saint Paul, Minnesota, e em Fresno, Califórnia.
O personagem de Clint Eastwood é um veterano da Guerra da Coréia, que atuou em outros filmes como "O Destemido Senhor da Guerra" (1986) e "Poder Absoluto" (1997). Na vida real, a tendência do ator para abordar referências ambíguas à Guerra da Coréia é considerada audaciosa por aqueles que o conhecem, porque durante toda a sua passagem pelo Exército, ele foi salva-vidas na Post Swimming Pool em Fort Ord, Califórnia. Ele nunca pôs os pés na Coreia do Sul.
Walt diz um total de cinquenta e três insultos.
"Kowalski" é o sobrenome mais popular na Polônia. Significa "Smith" na forma de adjetivo, o usual para nomes poloneses. Kowalczyk, nome de Marilyn Monroe em Quanto Mais Quente Melhor (1959), significa "Smithson".
Um membro da gangue Hmong tem caracteres chineses tatuados na parte superior do peito. Eles se traduzem em "família".
Clint Eastwood (Walt) usa a mesma voz grave e grave que usou como Sargento de Artilharia Thomas Highway em O Destemido Senhor da Guerra (1986).
A cena em que Walt aponta um rifle para a gangue Hmong e diz "sai do meu gramado" pode ser uma homenagem a Doido para Brigar ... Louco para Amar (1978), em que Ma aponta um rifle para a gangue da Viúva Negra e diz "saia da minha varanda."
Estreia no cinema de Doua Moua (Spider). O mesmo sobre Ahney Her.
Em fevereiro de 2021, o ator Bee Vang publicou um artigo na coluna "Think" da NBC News, criticando o filme por apresentar muitas calúnias anti-asiáticas. Ele escreveu: "Na época, havia muita discussão sobre se os insultos do filme eram insensíveis e gratuitas ou simplesmente insultos inofensivas. Achei enervante o riso que os insultos provocavam em cinemas com público predominantemente branco. E foi sempre brancos que diziam: 'Você não aguenta uma piada?' ”Dois anos após a estreia do filme, Vang começou a colaborar com ativistas e cineastas em projetos multimídia que promoviam a justiça social. Ele também realizou eventos de falar em público em todo o país, criticando a forma como a comunidade Hmong é retratada no filme.
Muitos fãs de Clint Eastwood veem paralelos entre esse filme e Os Imperdoáveis (1992) de Eastwood. Ambos os filmes começam com a morte de sua esposa, e ele interpreta um personagem antiquado que tem problemas para se adaptar a um mundo em rápida modernização. Os Imperdoáveis (1992) é amplamente considerado como o adeus de Eastwood a seus muitos papéis no oeste, como sua persona "O Estranho Sem Nome" da trilogia Por Um Punhado de Dolares, já filme é considerado por muitos como Eastwood se despedindo da marca registrada do personagem da lei que interpretou em diversos filmes como Rota Suicida (1977) e a franquia Perseguidor Implacável (1971).
Trilha Sonora:
Gran Torino - Jamie Cullum feat. Clint Eastwood
Gran Torino - Jamie Cullum and Don Runner
Psalm XVIII - E. Power Biggs
Esto Es Guerra - Convoy Obanito
We Don't F* Around - Budd-O, L.B. & Buddah
The Bartender - Renzo Mantovani and Doug Webb
Maybe So - Renzo Mantovani and Doug Webb
Appreciation- L.P., Buddah, Cuzz, and L.B.
Hmoob Tuag Nthi - Rare
All My Hmong Mutha F*kaz - Buddah
Gran Torino - Jamie Cullum & Clint Eastwood
Filmografia Parcial:
Clint Eastwood
Por Um Punhado de Dólares (1964); Por uns Dólares a Mais (1965); Meu Nome É Coogan (1968); O Desafio das Águias (1968); O Estranho Que Nós Amamos (1971); Perversa Paixão (1971); Perseguidor Implacável (1971); O Estranho Sem Nome (1973); Magnum 44 (1974); Escalado para Morrer (1975); Josey Wales - O Fora da Lei (1976); Sem Medo da Morte (1976); Rota Suicida (1977); Doido para Brigar... Louco para Amar (1978); Alcatraz - Fuga Impossível (1979); Bronco Billy (1980); Punhos de Aço - Um Lutador de Rua (1980); Firefox: Raposa de Fogo (1982); Impacto Fulminante (1983); Um Agente na Corda Bamba (1984); O Cavaleiro Solitário (1985); Dirty Harry na Lista Negra (1988); Os Imperdoáveis (1992); Na Linha de Fogo (1993); Um Mundo Perfeito (1993); As Pontes de Madison (1995); Menina de Ouro (2004); Gran Torino (2008); Curvas da Vida (2012), A Mula (2018); Cry Macho (2021)
Bee Vang
Gran Torino (2008); Comisery (2020); Voice of Shadows (2022)
Ahney Her
Gran Torino (2008); Night Club (2011); Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016)
John Carroll Lynch
Dois Velhos Rabugentos (1993); A Cura (1995); Fargo: Uma Comédia De Erros (1996); Estranha Obsessão (1996); Paixão Bandida (1996); Volcano: A Fúria (1997); A Outra Face (1997); Código Para o Inferno (1998); Amor Maior que a Vida (2000); 60 Segundos (2000); Confidence - O Golpe Perfeito (2003); Na Companhia do Medo (2003); Zodíaco (2007); Coisas que Perdemos pelo Caminho (2007); Gran Torino (2008); Juventude em Fúria (2010); Ilha do Medo (2010); Amor a Toda Prova (2011); Marcados Pela Guerra (2014); Ted 2 (2015); Milagres do Paraíso (2016); Fome de Poder (2016)
Christopher Carley
Hora de Voltar (2004); Homecoming (2005); Leões e Cordeiros (2007); Gran Torino (2008); Uma Secretária de Morte (2010)
Brian Haley
Além da Eternidade (1989); Ninguém Segura este Bebê (1994); Marte Ataca! (1996); O 13º Aniversário (1999); Pearl Harbor (2001); Os Infiltrados (2006); Gran Torino (2008); O Sequestro do Metrô 123 (2009); Os Agentes do Destino (2011); A Grande Escolha (2014); Courting Des Moines (2016)
Geraldine Hughes
Duplex (2003); Rocky Balboa (2006); Gran Torino (2008); O Encontro (2014); O Livro de Henry (2017); Nine Days (2020) ;Your Honor (seriado 2020-2021)
Dreama Walker
Sex and the City: O Filme (2008); Gran Torino (2008); Gossip Girl: A Garota do Blog (seriado 2008 -2009); O Primeiro Mentiroso (2009); Obediência (2012); Apartment 23 (seriado 2012-2013); O Ceifador Adormecido (2014); Paperback (2015); Era Uma Vez Em... Hollywood (2019); Pooling to Paradise (2021)
Fontes:
The NY Times
The Guardian
Rolling Stone
IMDB