sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

DIAS MELHORES / SHAONIAN DE NI / BETTER DAYS (2019) - CHINA / HONG KONG

UM MAL CHAMADO BULLYING

Chen Nian (Dongyu Zhou) é uma jovem que está entre as melhores alunas de sua classe e se prepara para fazer os exames de admissão, chamado Gaokao, e assim entrar na Universidade de Pequim. Certo dia, a escola é abalada com o suicídio de uma estudante e Chen termina por cobrir seu corpo com seu casaco para evitar que ficasse exposto a olhares e fotografias. A polícia vai até a escola e a interroga, entendendo que, pelo ato, conheceria a jovem melhor do que qualquer pessoa, mas o interrogatório é interrompido por um professor alegando que a aula começará e que ela não poderá perder. Ao voltar à sala, Chen percebe que será a próxima vítima de perseguição de Wei Lai (Ye Zhou) e suas amigas, responsáveis também por perseguir a jovem falecida, pois passam a acreditar que Chen as teria denunciado pela prática de Bullying. A intimidação logo se transformará em agressão.

Ao voltar para casa, depois de um dia de aula, Chen vê um grupo de jovens espancando um rapaz e resolve ligar para a polícia. O grupo percebe, a detém e levam o seu dinheiro, mas terminam por libertá-la, deixando-a com Xiao Bei (Jackson Yee) bem machucado. Este resolve “devolver” a quantia levada e tenta consertar seu celular. O jovem infrator oferece proteção à melancólica Chen, que recusa, mas com o passar dos dias a perseguição de Wei Lai e suas asseclas a força a repensar a proposta e, mesmo sem condições para pagar, Xiao (cujo lema é “eu sempre me vingo no final”) aceita, passando a acompanhá-la à distância e levando-a para sua casa onde a jovem pode a noite estudar em paz. Um dia, quando Xiao não pode acompanhá-la, Chen sofre um forte ataque do grupo de Wei que mudará tudo na vida do trio.

Dias Melhores (Shaonian de ni / Better Days) concorreu ao Oscar de 2021 como Melhor Filme de Língua Estrangeira perdendo para o dinamarquês “Druk - Mais Uma Rodada”. Essa já seria uma indicação da qualidade da produção, mas Dias Melhores é um daqueles filmes que pegam o espectador logo na primeira cena (uma cena futura) para depois voltarmos à época de “vestibular” (lá chamado de "Exame Nacional de Admissão" que acontece todo ano no mês de junho) de Chen, uma jovem que mora sozinha, pois sua mãe fugiu para outra localidade diante da falta de recursos e diversos cobradores à porta. A mãe mantém contato com a filha e acredita que ao esta passar para a Faculdade de Pequim, todos os problemas estarão resolvidos, pois Chen terá um futuro reservado aos melhores. Só que esse distanciamento impacta na vida da jovem que se vê sozinha a enfrentar seus problemas e algozes. O diretor Derek Tsang resolveu centrar sua narrativa em um mal que vem crescendo progressivamente no mundo: a Cultura do Bullying. Tsang nos mostra como esse mal afeta os jovens: mentalmente, emocionalmente e fisicamente. E dentro desse mal, Tsang nos mostra um sistema de ensino insanamente intenso, uma ordem social Darwiniana, hierárquica, que faz com que pais se ajoelhem diante de professores quando os filhos não alcançam as notas e até mesmo agridem os filhos como forma de punição vexatória (pois colocam suas esperanças e sonhos neles). Essa pressão mostra-se presente em todo o filme: paredes adornadas com slogans - “Sem Desculpas” ou “Os inteligentes sempre encontram maneiras”; atividades físicas com frases de lembretes (passando-se por motivacionais), um jogo em que o aluno é compelido a estar sempre no topo, nunca falhar (“falhar não é uma opção”), ver seus colegas como inimigos (“competidores”) e o conceito de que falhar em apenas um teste pode arruinar sua existência futura. Pressões socias, escolares e de seus pares. Para o mundo ocidental parece uma loucura, mas o diretor nos mostra que essa é a única opção, é como o sistema de ensino Chinês se baseia. Os melhores (os que ingressarem na faculdade) serão recompensados e ponto final. E neste contexto, o romance Romeu e Julieta traz uma pitada de sutileza, lirismo e poesia ao filme, fazendo com que o espectador torça por um final feliz cada vez mais difícil.

Mas quem pensa que o filme ficará apenas nessa retórica, se surpreenderá quando houver uma guinada e uma morte acontecer. O espectador será munido de informações para desvendar o que realmente aconteceu, como aconteceu e porque aconteceu. Nesse ponto os investigadores (do início do filme), o experiente Lao Yang e o jovem Zheng Yi (Fang Yin) acreditarão que Chen e Xiao tem participação, mas como provar? Zheng Yi acredita que pode. E como dois adolescentes que vivem sozinhos podem resistir a pressão?

O elenco é o grande trunfo deste filme. Dongyu Zhou com 27 anos na época de lançamento do filme conseguiu convencer como uma adolescente praticamente 10 anos mais jovem e Jackson Yee (na época com 19 anos) consegue se mostrar um pouco mais velho que o personagem de Dongyu. Ye Zhou, aos 21 anos, fazendo a vilã, também se destaca. O restante do elenco, que dá corpo a história, não desafina. 


Dias Melhores é baseado no livro “In His Youth, In Her Beauty” de Jiu Yue Xi (2016), um grande filme que aborda o Bullying Escolar e entrelaça uma história de amor. Com foco na história de uma adolescente, mostra que o problema está longe de ser resolvido, não pretendendo dar uma solução, mas levantar questões, elucidar problemas e mostrar que a sociedade em qualquer parte do mundo deve acordar. O filme nos mostra que neste momento muitos adolescentes o enfrentam todos os dias, mas têm muito medo de discuti-los e pouquíssimos a ajudá-los. Em determinado momento do filme, percebemos o quanto o problema é sério: a escola joga o problema para o professor, que joga para os pais do agressor. Já num panorama mundial estes acusam quem sofre o Bullying, isto é, a vítima sofre duas vezes (“ou você é o valentão ou é o intimidado”). Quando a sociedade entender que quem pratica o Bullying deve ser orientado, penalizado e tratado, quando pais evitarem colocar seus filhos em escolas que permitam tal prática (para que estes não apresentem danos psicológicos) e quando as escolas perceberem que são desprestigiadas por causa de tais atos, talvez seja um início para criarem medidas que protejam a todos. Um conto sobre resiliência, gratidão, diferenças sociais, objetivos distintos, amizade, sacrifício e moralidade


Trailer:




Trilha Sonora:

Fly - Yoyo Sham 

Inky and Blinky's Band - Eric Matyas

HeartDust - Matteo De Grandis

Für Alina - Min He


Fly - Yoyo Sham 


Tradução (livre) da música:

Minha mente continua tiquetaqueando, tiquetaqueando, tiquetaqueando

Vestida de solidão

Sua boca continua balbuciando e balbuciando

Recebendo sinais imaginários

Você quer voar pairando sobre este céu?

Eu quero voar e ser uma lua que te guarda


Caminhando pelo mundo e me vendo e sendo empurrada passo a passo

Ofegante fora da multidão

Ao longo da vida levante-se peça por peça 

Soletre o amor em pedaços


Assistindo você voar para um lugar distante sem se importar com nada

Jogue-me na confusão às vezes insolúvel


Todo o caminho, para frente e para trás e para frente e para trás

Anseio por perdão

Eu espero pela sua esperança


Você vai proteger o mundo

Eu protejo você

Eu protejo você

Dexe-me te proteger


Cartazes:





Filmografia Parcial:

Dongyu Zhou







A Árvore do Amor (2010);  Mr. Nian (2016);  Love & Life & Lie (2017);  A Nail Clipper Romance (2017); Isto Não é o Que Eu Esperava (2017); Pérolas no Mar (2018); Behind the Scenes (seriado - 2019); Dias Melhores (2019);  The Year of the Everlasting Storm (2021); Fall in Love with a Scientist (seriado 2021);


Jackson Yee







Osso Duro (2015);  GG Bond: Guarding (2017);  Song of Phoenix (seriado 2017);  Dias Melhores (2019); L.O.R.D: Legend of Ravaging Dynasties 2 (2020);

 

Ye Zhou







Dias Melhores (2019);  Word of Honor (2021);

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

ARÁBIA (2017) - BRASIL

“NO FIM, TUDO O QUE SOBRA É A LEMBRANÇA DO QUE A GENTE VIVEU”

André (Murilo Caliari) cuida do irmão mais novo enquanto o pais estão viajando a trabalho, contando com a assistência de sua tia Márcia (Gláucia Vandeveld), que trabalha prestando auxílios de enfermagem ao visitar as diversas casas da localidade. Certo dia, em uma visita com André, Márcia avista um operário de uma fábrica de alumínio chamado Cristiano (Aristides de Souza) e lhe dá carona. Pouco tempo depois, o mesmo operário sofre um acidente sendo encaminhado inconsciente para o hospital. Marcia pede ao sobrinho que vá até casa de Cristiano e que traga alguns de seus pertences para quando ele tiver alta, mas os médicos não conseguem explicar o porquê do operário não voltar à consciência. André resolve voltar a casa do solitário Cristiano, na qual se depara com um caderno em que o operário expõe a realidade de sua vida: passos errados, trabalhos mal renumerados, conexões humanas perdidas, um amor deixado para trás, culpas e sua percepção dentro de uma sociedade em constante mudança que lhe explora como um trabalhador descartável e o obriga a constantes mudanças.

Arábia, título que se explica a partir de um conto de James Joyce no livro “Dubliners” e citado sob forma de uma piada contada por um dos colegas de trabalho de Cristiano. O filme se revela um inspirado "road movie" com várias camadas a serem percebidas, não por acaso foi premiado no 50º Festival de Brasília. Interessante dizer que os primeiros vinte minutos iniciais não sintetizam Arábia, mas funcionam como preludio do que se seguirá, numa forma diferente, mas bem-vinda, de apresentar uma estória no filme (uma estória que narra uma estória), mudando o foco narrativo no meio da projeção. O filme se inicia, propriamente, com a leitura do caderno-diário, um auto-relato da vida daquele operário que André conhecera rapidamente. Nessa primeira metade da narrativa, Cristiano não é necessariamente o protagonista, ele divide esse protagonismo com os demais personagens sendo mais um a viver nesse mundo. Já na segunda metade, ele se torna efetivamente o protagonista. A locução em off de Cristiano funciona dentro da proposta idealizada pelos diretores João Dumans e Affonso Uchôa que também assinam o roteiro.

Dumans e Uchôa realizaram um filme bem interessante, a partir de relatos que podem ou não ser uma mescla de imaginação com realidade de Cristiano. Tomaremos conhecimento da prisão do protagonista ainda adolescente; sua percepção de que a cadeia não é lugar para ele; sua vida de trabalhador itinerante em inúmeras cidades do sudeste do Brasil; a escassez de empregos seguros e a dura luta para conseguir um ponto de apoio profissional, além de suas breves amizades. Cristiano, um homem de pouca instrução, conhece Ana, supervisora de uma tecelagem onde conseguira emprego, um bom emprego. O casal se apaixona e Cristiano vive o melhor momento de sua vida, mas as brevidades de sua vida alcançam o seu relacionamento, jogando-o novamente na estrada. Ainda que a narrativa seja ficcional, a dupla de diretores nos expõe um painel de um setor da sociedade que se mostra real e universal na qual muitos “Cristianos” podem estar vivendo nesse momento os percalços de seu personagem. E é quando ele encontra um grupo de teatro sendo instruído a escrever algo importante sobre sua vida, que começa a colocar em palavras o que não conseguiu expressar verbalmente ao longo de sua vida.  É o início de sua autodescoberta, mas não a percepção de que vivera até aquele momento uma vida de vastas experiências, nos mostrando que sua existência está longe de ser algo sem valor como ele julga, na verdade, mostra-se muito rica  em amadurecimento e percepção do seu papel e de muitas pessoas em um sistema que insiste em transformá-los em meros trabalhadores e que, ironicamente, precisa deles para alimentar seu funcionamento.

No elenco, temos Aristides de Souza  que ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília. Curioso sabermos que quase não pudera ser escalado. Em 2014, quando os diretores decidiram por sua escalação, o mesmo estava preso por furto sendo solto três semanas antes de começarem a filmagens. Aristides, aos 23 anos, já havia sido perueiro, sorveteiro, vendedor de água mineral, vendedor de cigarro e salgados em semáforo, ajudante de pedreiro ... logo, após a soltura do ator, os diretores lhe deram um caderno com o intuito de narrar sua vida e uma forma de remunerá-lo antes do início das gravações. Aristides, em seu segundo papel, após o documentário “A Vizinhança do Tigre” (2016), com Uchoa na direção e Dumans no roteiro, entregou uma atuação crua e simples, revestida da melancolia que o personagem exigia. Os demais atores estão bem e entregam boas atuações.

Arábia, um filme autoral de 2017, com um orçamento de R$ 420 mil, nos mostra uma crítica universal aos governos ineficientes e indiferentes que diariamente arremessam milhões a subempregos nas quais diversas corporações se beneficiam dessa precarização do trabalho, gerando uma imensa massa de trabalhadores em desigualdade e sem poder de barganha, cidadãos "anônimos" que são frequentemente obrigados a seguir adiante, trocando constantemente de emprego e de moradia. Como muitos ao redor do mundo, Cristiano só deseja uma vida digna com estabilidade e recursos que lhe permitam viver e ser feliz.  No final, é um filme sobre Cristiano e também sobre os “Cristianos” mundo afora que são considerados peças descartáveis.


Trailer:



Premiações:

Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Festival Internacional de Cine Independente de Buenos Aires 

Golden Apricot Yerevan International Film Festival (Armênia)

Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa

Ljubljana International Film Festival

Oslo Films from the South Festival

Prêmio Guarani (2019)

Mostra Sesc de Cinema (2019)



Trilha Sonora:

Blues Run the Game - Jackson C. Frank

Barzakh - Anouar Brahem and Bechir Selmi

Três Apitos - Maria Bethânia

Raízes - Renato Teixeira, Pena Branca and Xavantinho

Caminheiro - Mano Brown

Fora da Lei - Raul Seixas & Cláudio Roberto

Marina - Dorival Caymmi


Cartaz:





Filmografia Parcial:

Aristides de Souza







Arábia (2017);  Mascarados (2020); Eu, empresa (2021)


Murilo Caliari







Arábia (2017);


Renata Cabral







Mulher à tarde (2012); Arábia (2017);


Adriano Araújo








Homem Na Estrada (curta 2015); Arábia (2017); O Gargalo (curta - 2019); Filme de Domingo (curta - 2020) 


Gláucia Vandeveld









Elon Não Acredita na Morte (2016); Subybaya (2017); Arábia (2017);


Fontes:
BBC
The Guardian
The New York Times
O Globo

sábado, 24 de dezembro de 2022

AS LINHAS TORTAS DE DEUS / LOS RENGLONES TORCIDOS DE DIOS (2022) - ESPANHA

 AMBIVALÊNCIAS

Alice Gould (Barbara Lennie) se interna voluntariamente em uma instituição psiquiátrica com autorização do marido e do Estado, alegando estar sofrendo de paranoia, com um laudo e uma carta de seu médico, o Dr. Donadio, informando que a mesma possui extrema habilidade em mentir, manipular fatos e convencer pessoas e psiquiatras inexperientes, além de um raciocínio afiado e respostas para tudo.

 

Na entrevista de entrada, com o Dr Ruipérez (Frederico Aguado), é questionada sobre o fato de ter envenenado o marido Heliodoro (David Selvas) pelo menos três vezes (ela se diz formada em ciências químicas, mas não a exerce) com substancias indetectáveis em testes padrões e que este optou por preservá-la ao não acionar a polícia, recorrendo ao Dr. Donaldio para interna-la. Alice retruca que, se este a denunciasse, seria aberta uma investigação e ele perderia a guarda de seus bens que iria para alguém nomeado pelo Estado, com isso ele optou pelo que ela considera um “Sequestro Legal” e que permitiria esse se tornar administrador de seus bens.

“Alicia” é apresentada a Montserrat Castell (Loreto Mauleón) vice-diretora do centro, já que Samuel Alvar (diretor e único que sabe sua real identidade) encontra-se de férias, mostrando-a quais são as regras do local. Em seu quarto, com o livro que levara, Alice nos mostra seu real motivo de estar ali: ela é uma investigadora particular que se infiltrou no local com o intuito de desvendar o assassinato de Damian, ocorrido na instituição, cujo pai da vítima acredita que não houve real interesse em elucidar o caso, sendo tratado como acidente. E possui uma carta enviada pelo assassino de Damian Garcia del Olmo ao pai, Sr. Del Omo, que conseguira levar para o instituto.

Quanto mais Alice se aprofunda em sua investigação, mais começa a suspeitar de que algo realmente ocorreu. Ela faz amizade com alguns internos, mais particularmente com Ignacio Urquieta (Pablo Derqui), que possui algumas regalias por boa conduta, como ter um isqueiro, mas que sofre de hidrofobia, capaz de lhe causar queimaduras no corpo. 

Durante suas sessões com o Dr. César Arellano (Javier Beltrán), Alice se mostra uma mulher delicada, inteligente e atraente ainda que se diga fiel. Arellano começa a demonstrar um pouco mais do que interesse profissional à “Alicia”, o que permite que ela possa usar um estratagema que a leve a conseguir informações no arquivo central da clínica. Com a chegada de Alvar, Alicia pede que este valide sua real identidade e sua missão no local, mas para seu espanto, o diretor revela desconhecer completamente quem ela é, que nunca falara com Del Omo, nunca conversara com Donadio, apenas tomara conhecimento de sua carta e que o caso de Damian fora suicídio. Alvar informa a Montserrat e Arellano que a paciente possui realmente problemas mentais, enquanto Alicia tenta convencer a dupla de que está sendo vítima de um golpe muito bem orquestrado e que Alvar pode estar envolvido. Ao Alvar demonstrar descontrole com a situação, Montserrat e Arellano começam a crer que ele pode ter envolvimento na hospitalização de “Alicia” e que o suicídio de Damian pode ter sido algo mais.

Distribuído pela Netflix em sua plataforma, As Linhas Tortas de Deus é um filme espanhol que apresenta inúmeras qualidades. Oriundo do livro de Torcuato Luca “Los Renglones Torcidos de Dios”, traz um forte suspense que prenderá o espectador até o seu minuto final, na qual muitos poderão ter dúvidas quanto a solução dada pela produção. O filme tem visível inspiração na produção “A Ilha do Medo” com Leonardo Di Caprio e homenagens ao filme “Um Estranho no Ninho”, deixando o espectador a divagar sobre as diversas reviravoltas que o roteiro vai apresentando. E, de acordo, com que a estória avança, novos ingredientes se acrescentam e o espectador tem que montar o quebra-cabeças. O filme, propositadamente, não segue uma narrativa linear visando dificultar a percepção do espectador e deixando-o com várias dúvidas do que realmente está acontecendo.

De acordo com que nos envolvemos na estória várias versões nos são apresentadas: Em um primeiro momento, nos é mostrado Alice entrando na instituição voluntariamente (com Del Omo a deixando antes da entrada). Os médicos leem a carta do Dr. Donadio e concluem que Alicia (seu novo nome dado pela instituição) possui distúrbios que a qualificam a ali estar. Em um segundo momento. vemos que Alicia é uma investigadora contratada, que se infiltra para descobrir quem matara o filho de Del Omo e enviara uma enigmática carta citando o crime. Del Omo teria lhe dito que conversara com Alvar e o mesmo concluíra que entrar simulando uma doença não levantaria suspeitas.  Em um terceiro momento, vemos Alvar antecipar o retorno de suas férias frente ao problema causado por Alicia. Ele diz desconhecer todas essas informações e que não conhece nenhuma das pessoas narradas por ela e nunca a vira. Alicia levanta suspeitas sobre as estranhas atitudes de Alvar e esse adverte seus companheiros de trabalho de que ela, conforme a carta, é muito contundente em suas afirmações e muito inteligente sendo capaz de enganá-los. Em um quarto momento, vemos Alicia passando por um forte procedimento médico e percebendo que fora vítima de um engodo. O marido a teria colocado propositadamente na instituição (e que, na verdade não fora engando por Alice a assinar sem saber de sua internação) e que este conseguira uma pessoa para se passar por Del Omo e que o Dr. Donaldio participara de tudo. Ninguém sabe quem é Del Omo, o Marido aparentemente desapareceu com todo o dinheiro e o Dr. Donaldio foi para um congresso em Zurique e não responde aos telegramas enviados pela clínica. Alvar não tem respostas para esses dilemas, mas acha que Alicia é perigosa. Já Alicia acredita que Alvar está envolvido no plano e preocupado por ela descobrir seu envolvimento no antigo crime. Montserrat e Arellano tentam validar a estória de Alicia. Alvar se incomoda de sua avaliação não ser levada a serio e sua conduta ser questionada. Surgirão novas informações que levarão a conjecturar quem está certo nesta intricada estória. 

Se você não viu o filme, pule esta este parágrafo e passe para o seguinte, pois explicarei como filme fica melhor de ser visto e entendido. Primeiro temos que considerar que o filme, ao longo de sua projeção, não apresenta flashbacks (cenas do passado) e sim flashfowards (cenas do futuro), o que confundirá muitos que o assistirem sem essa informação pela primeira vez, pois o diretor embaralhou a ordem da narrativa, até um momento em que o presente (a estória de Alice) se juntará às “cenas futuras” e entenderemos o contexto. Isso quer dizer que tudo que é mostrado no início e meio do filme (o investigador, o crime, a legista, o diretor, a pessoa morta), sem Alice  ainda irá acontecer. Quando Alicia começa a empreender o seu plano de fuga e o coloca em prática, percebemos que os eventos “anteriormente mostrados” estarão valendo a partir dali. A narrativa fica cronologicamente correta e se torna mais fácil de entender. Se você ainda assim desejar entender quem está correto, eu diria que colocar o foco nas falas do diretor a respeito de Alicia é a melhor opção.

 

Quanto ao ótimo elenco, a dupla Barbara Lennie e David Selvas trabalharam  no filme "Um Contratempo" (2016), outro filme muito bem realizado, a diferença é que David Selvas  tem pouco momentos em cena. Eduard Férnandez ("Todos Já Sabem" e "O Que Você Faria?") fez um ótimo trabalho como o diretor que pode estar ou não envolvido nessa envolvente estória. Plablo Derqui está muito bem como o hidrofóbico que ajuda Alicia; O jovem Samuel Soler fez o papel duplo dos irmãos Rómulo e Remo (e convenceu nos dois papéis); Javier Bestrán faz o médico que se mostra atraído por Alícia; a atriz Loreto Mauléon faz a Dra Montserrat que passa a ter séria duvidas quanto a postura de Alvar. Francisco Javier Pastor interpreta o Homem-Elefante com relevância para a estória. 

Dirigido por Oriol Paulo (de filmes como: "Um Contratempo", "O Corpo", "Durante a Tormenta" e pelo roteiro de "Os Olhos de Julia"), "As Linhas Tortas de Deus", título que se explica através da frase de Alvar, mostra-se um thriller acima da média por sua proposta de deixar o espectador conjecturando em qual estória deverá acreditar. Como de costume, o cinema espanhol nos apresenta uma obra bem estruturada que mesmo possuindo uma duração comercialmente maior não se percebe o tempo passar.


Trailer:




Curiosidades (contém spoilers sobre o final do filme):

David Selvas e Barbara Lennie também interpretam marido e mulher em "Um Contratempo"

Ambientado em 1979

Tal como acontece com muitos outros filmes, o livro e, neste caso, o seu final é muito melhor do que a ambiguidade onde este filme termina. O público fica sem um final real aqui, enquanto o livro oferece um final inteligente e bem escrito, onde ela é o que sempre foi desde o início: uma mulher doente que tentou assassinar o marido e se livrar disso com suas mentiras. No livro, eles votam uma segunda vez, liberando-a novamente porque o motivo de sua doença havia desaparecido (o marido pegou seu dinheiro), mas ela decide ficar quando percebe que realmente está doente e louca, e não pode confiar em sua mente. no mundo real.



Cartazes:











Filmografia Parcial:

Barbara Lennie







La bicicleta (2006);  Los Condenados (2009);  Amar en Tiempos Revueltos (seriado 2005); A Pele que Habito (2011);  Jogos Infantis (2012); Estrela Cadente (2014);   A Garota de Fogo (2014);  O Apóstata (2015);  Um Contratempo (2016); Uma Espécie de Família (2017); O Vazio do Domingo (2018);  Todos Já Sabem (2018);  O Candidato (2018); A Desordem Que Ficou (2020); As Linhas Tortas de Deus (2022)


Eduard Férnandez







Souvenir - Um Caso de Amor (1994);  Los lobos de Washington (1999);  El Portero (2000); En la Ciudad (2003);  O Que Você Faria? (2005);  Che 2: A Guerrilha (2008); Amores Locos (2009); Flores Negras (2009); Pão Negro (2010); A Pele que Habito (2011);  Tirando a Sorte Grande (2012); Marsella (2014); Truman (2015); A Noite em que minha Mãe Matou meu Pai (2016); O Homem das Mil Caras (2016); Os Últimos das Filipinas (2016); Perfeitos Desconhecidos (2017); Todos Já Sabem (2018);  Enquanto a Guerra Durar (2019); Mediterráneo (2021);  As Linhas Tortas de Deus (2022)


Frederico Aguado







Amar en Tiempos Revueltos (seriado 2005); Venus (2022);  As Linhas Tortas de Deus (2022)


David Selvas







Amic/Amat (1999);  Pirata (1999);  Freetown (2002); Valentín (2002); Che 2: A Guerrilha (2008); The Lost (2009);  Cela 211 (2009);  Trash (2010); Um Contratempo (2016); O Dia de Amanhã (2018);  A Casa (2020); Libertad (2021); As Linhas Tortas de Deus


Loreto Mauleón







El Extraño Anfitrión (2012); La Casa de mi Padre (serie 2016);  El Secreto de Puente Viejo (serie 2011-2019); As Linhas Tortas de Deus (2022); Desejo e Sedução (2004);   


Pablo Derqui







O Habitante Incerto (2004);  Salvador (2006);  Fuerte Apache (2007);  Expulsados 1609, la Tragedia de los Moriscos (2009); Os Olhos de Júlia (2010); Poder Paranormal (2012); El Cafè de la Marina (2014);  Os Fillos do Sol (2017); La Vampira de Barcelona (2020); Dois (2021); As Linhas Tortas de Deus (2022)


Javier Beltrán







Zoo (2008);  Poucas Cinzas: Salvador Dalí (2008);  Animals (2012);  Se eu não Tivesse te Conhecido (serie 2018); As Leis da Fronteira (2021);  As Linhas Tortas de Deus (2022)