“NO FIM, TUDO O QUE SOBRA É A LEMBRANÇA DO QUE A GENTE VIVEU”
André (Murilo Caliari) cuida do irmão mais novo enquanto o pais estão viajando a trabalho, contando com a assistência de sua tia Márcia (Gláucia Vandeveld), que trabalha prestando auxílios de enfermagem ao visitar as diversas casas da localidade. Certo dia, em uma visita com André, Márcia avista um operário de uma fábrica de alumínio chamado Cristiano (Aristides de Souza) e lhe dá carona. Pouco tempo depois, o mesmo operário sofre um acidente sendo encaminhado inconsciente para o hospital. Marcia pede ao sobrinho que vá até casa de Cristiano e que traga alguns de seus pertences para quando ele tiver alta, mas os médicos não conseguem explicar o porquê do operário não voltar à consciência. André resolve voltar a casa do solitário Cristiano, na qual se depara com um caderno em que o operário expõe a realidade de sua vida: passos errados, trabalhos mal renumerados, conexões humanas perdidas, um amor deixado para trás, culpas e sua percepção dentro de uma sociedade em constante mudança que lhe explora como um trabalhador descartável e o obriga a constantes mudanças.
Arábia, título que se explica a partir de um conto de James Joyce no livro “Dubliners” e citado sob forma de uma piada contada por um dos colegas de trabalho de Cristiano. O filme se revela um inspirado "road movie" com várias camadas a serem percebidas, não por acaso foi premiado no 50º Festival de Brasília. Interessante dizer que os primeiros vinte minutos iniciais não sintetizam Arábia, mas funcionam como preludio do que se seguirá, numa forma diferente, mas bem-vinda, de apresentar uma estória no filme (uma estória que narra uma estória), mudando o foco narrativo no meio da projeção. O filme se inicia, propriamente, com a leitura do caderno-diário, um auto-relato da vida daquele operário que André conhecera rapidamente. Nessa primeira metade da narrativa, Cristiano não é necessariamente o protagonista, ele divide esse protagonismo com os demais personagens sendo mais um a viver nesse mundo. Já na segunda metade, ele se torna efetivamente o protagonista. A locução em off de Cristiano funciona dentro da proposta idealizada pelos diretores João Dumans e Affonso Uchôa que também assinam o roteiro.
Dumans e Uchôa realizaram um filme bem interessante, a partir de relatos que podem ou não ser uma mescla de imaginação com realidade de Cristiano. Tomaremos conhecimento da prisão do protagonista ainda adolescente; sua percepção de que a cadeia não é lugar para ele; sua vida de trabalhador itinerante em inúmeras cidades do sudeste do Brasil; a escassez de empregos seguros e a dura luta para conseguir um ponto de apoio profissional, além de suas breves amizades. Cristiano, um homem de pouca instrução, conhece Ana, supervisora de uma tecelagem onde conseguira emprego, um bom emprego. O casal se apaixona e Cristiano vive o melhor momento de sua vida, mas as brevidades de sua vida alcançam o seu relacionamento, jogando-o novamente na estrada. Ainda que a narrativa seja ficcional, a dupla de diretores nos expõe um painel de um setor da sociedade que se mostra real e universal na qual muitos “Cristianos” podem estar vivendo nesse momento os percalços de seu personagem. E é quando ele encontra um grupo de teatro sendo instruído a escrever algo importante sobre sua vida, que começa a colocar em palavras o que não conseguiu expressar verbalmente ao longo de sua vida. É o início de sua autodescoberta, mas não a percepção de que vivera até aquele momento uma vida de vastas experiências, nos mostrando que sua existência está longe de ser algo sem valor como ele julga, na verdade, mostra-se muito rica em amadurecimento e percepção do seu papel e de muitas pessoas em um sistema que insiste em transformá-los em meros trabalhadores e que, ironicamente, precisa deles para alimentar seu funcionamento.
No elenco, temos Aristides de Souza que ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília. Curioso sabermos que quase não pudera ser escalado. Em 2014, quando os diretores decidiram por sua escalação, o mesmo estava preso por furto sendo solto três semanas antes de começarem a filmagens. Aristides, aos 23 anos, já havia sido perueiro, sorveteiro, vendedor de água mineral, vendedor de cigarro e salgados em semáforo, ajudante de pedreiro ... logo, após a soltura do ator, os diretores lhe deram um caderno com o intuito de narrar sua vida e uma forma de remunerá-lo antes do início das gravações. Aristides, em seu segundo papel, após o documentário “A Vizinhança do Tigre” (2016), com Uchoa na direção e Dumans no roteiro, entregou uma atuação crua e simples, revestida da melancolia que o personagem exigia. Os demais atores estão bem e entregam boas atuações.
Arábia, um filme autoral de 2017, com um orçamento de R$ 420 mil, nos mostra uma crítica universal aos governos ineficientes e indiferentes que diariamente arremessam milhões a subempregos nas quais diversas corporações se beneficiam dessa precarização do trabalho, gerando uma imensa massa de trabalhadores em desigualdade e sem poder de barganha, cidadãos "anônimos" que são frequentemente obrigados a seguir adiante, trocando constantemente de emprego e de moradia. Como muitos ao redor do mundo, Cristiano só deseja uma vida digna com estabilidade e recursos que lhe permitam viver e ser feliz. No final, é um filme sobre Cristiano e também sobre os “Cristianos” mundo afora que são considerados peças descartáveis.
Trailer:
Premiações:
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Festival Internacional de Cine Independente de Buenos Aires
Golden Apricot Yerevan International Film Festival (Armênia)
Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa
Ljubljana International Film Festival
Oslo Films from the South Festival
Prêmio Guarani (2019)
Mostra Sesc de Cinema (2019)
Trilha Sonora:
Blues Run the Game - Jackson C. Frank
Barzakh - Anouar Brahem and Bechir Selmi
Três Apitos - Maria Bethânia
Raízes - Renato Teixeira, Pena Branca and Xavantinho
Caminheiro - Mano Brown
Fora da Lei - Raul Seixas & Cláudio Roberto
Marina - Dorival Caymmi
Cartaz:
Filmografia Parcial:
Aristides de Souza
Arábia (2017); Mascarados (2020); Eu, empresa (2021)
Murilo Caliari
Arábia (2017);
Renata Cabral
Mulher à tarde (2012); Arábia (2017);
Adriano Araújo
Homem Na Estrada (curta 2015); Arábia (2017); O Gargalo (curta - 2019); Filme de Domingo (curta - 2020)
Gláucia Vandeveld
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