O ÚNICO OBJETIVO NUMA GUERRA É
ESTAR VIVO
Produção de 1987 do diretor Stanley Kubrick, em seu penúltimo filme, narra a guerra do Vietnã do ponto de vista do soldado Joker (Matthew Modine), que ingressa na Academia dos Fuzileiros Navais na ilha de Parris, Carolina do Sul e, posteriormente, em pleno campo de batalha. Essa perceptível divisão do filme costuma dar muito errado, pois muitas vezes a parte inicial é mais valorizada e a segunda parte o filme decai. E Kubrick criou um filme que parecem dois, pois cada arco de história tem seus momentos de conclusão, mas também um arco tem relação direta com o outro que se inicia.
No primeiro arco vemos Joker (Gaiato na dublagem) sob as ordens do sádico sargento Hartman que resolve eleger o recruta Leonard Lawrence, apelidado de Pyle (Vincent D'Onofrio), como alvo de todo o seu preconceito e sadismo. Pyle é visivelmente inato para compor um corpo de fuzileiros, mas Hartam, numa composição inesquecível do ator R. Lee Ermey, não aceita que suas ordens sejam contestadas. Não aceita que os soldados não estejam de acordo com o que considera certo e, com mão de ferro, pune o grupo por qualquer deslize. Hartman chama seus soldados de meninas, manda que deem nome às suas armas, que durmam com elas. Ensina-lhes cantos de guerra até estarem fisicamente estafados para contestarem. Pyle é pesado e atrapalhado, muitas vezes acha tudo engraçado, o que irrita o sargento de uma forma que todo o grupo passa a sofrer. Quando Pyle é pego com doces, o sargento pune o grupo. Mesmo tendo apenas Joker como o único a ajudá-lo, Pyle não consegue entender que o grupo não está mais disposto a pagar por seus deslizes. A ação do grupo não tarda a acontecer, mas o resultado é muito pior do que poderia se imaginar. E aí entra a grande interpretação do ator Vincent D'Onofrio. Sua transformação de um abobalhado em um psicopata é impactante e o espectador chega a ficar incrédulo, junto com os soldados, no que estão presenciando: a lagarta não virou borboleta, virou um marimbondo com o ferrão mortal. E quando todos percebem, já é muito tarde. Hartman está ali não para criar homens, mas assassinos eficazes. Ele esvazia o cérebro de Pyle em oito semanas e lhe encurte todo o seu ódio, transformando-o em algo irreconhecível e irrecuperável. Pyle seria a obra-prima de Hartman, como o Dr Frankenstein que molda e dá vida à sua criatura. E a criatura, quando se percebe como tal, resolve vingar-se.
No
segundo arco vemos Joker e seu amigo Rafterman (Kevyn Major Howard) chegando à
base de Da Nang, como repórteres , encarregados de entrevistarem os
soldados, redigirem matérias para o jornal "Stars and Stripes" e colherem
depoimentos dos combatentes. O local, longe do front, causa certa apatia, uma
sensação de marasmo. Sua maior emoção é tirar fotos e entrevistar a atriz
Ann-Margret. Os soldados passam seus dias entre conversas, tirando fotos e
saindo com prostitutas, mas um ataque durante o cessar fogo, na ofensiva do Tet
, na cidade de Huê, norte de Saigon, em 1968, coloca em cheque a
eficiência norte americana. Joker se junta, no front, a um destacamento que
possui três personagens chave: Animal Mother (Adam Baldwin do seriado The Last
Ship), Bola Oito (Dorian Harewood) e Cowboy com que se encontrará na ofensiva.
Animal representa o flagelo da guerra. Não há compaixão, misericórdia ou
reflexão de sua parte. A guerra para ele é feia, suja e fará o que for
necessário para sobreviver nela. Bola Oito é mais calmo, sobrevive e não
entende o que faz num país do outro lado do mundo, onde é visto por desprezo
por aqueles que tenta salvar. Joker aprendeu as regras do jogo: usa um capacete
escrito “Born to Kill” que dá o nome ao título brasileiro e usa um broche que
demonstra pacifismo. Essa dualidade não passa despercebida por um oficial que o
repreende por usá-lo. Pacifismo fica em casa, ali é a guerra. Não há lugares
para os que pensam o contrário. Para Joker a entrada na guerra é para levar a
paz e, para que exista esta paz, muitas pessoas morrerão. É uma citação
literal do diretor, através de Joker, da filosofia junguiana. É a eterna
contradição que permeia o filme desde o início. Sem guerras não há paz, sem paz
há guerras. Triste e contraditório.
Joker e seu esquadrão caem em uma armadilha e inicia-se uma grande questão: salvarem os amigos e serem alvejados ou vê-los morrerem de uma forma terrível? Os animais predadores revelam-se meninos assustados, que se encolhem ou fingem bravura para esconderem seus medos. Do outro lado um atirador de elite parece saber onde cada um está. A morte é real, não é mais escrita em caneta por Joker. Agora ele é o protagonista e terá sua própria história para contar. Uma história pouco gloriosa que revela o lado sujo da guerra.
Analogias
não faltam:
- No início, o corte de cabelo dos soldados tem o mesmo simbolismo da perda de cabelo de Sansão. É o fim da força, é a derrota à vista.
- Não há praticamente diálogos entre o sargento e seu esquadrão, tudo é na base dos palavrões, sarcasmo e ordens.
- A forma como Kubrik mostra a desumanização do soldado. Quando Pyle tem o seu derradeiro confronto, na véspera do embarque, com seu algoz, não por acaso, se resolve dentro de um banheiro em meio a latrinas. A analogia do sujo e podre (para evitar palavrões) é óbvia.
- No helicóptero Joker conversa com um atirador que se gaba de ter matado 157 vietnamitas entre mulheres e crianças e 57 Búfalos enquanto atira em camponeses e ri dizendo que “mulheres e crianças correm menos”. A vida não tem valor, pessoas viram um número a ser superado a cada dia. É a destruição da identidade individual que o cineasta já abordara em "A Laranja Mecânica".
- Em uma cerimônia fúnebre, cada um se despede com frases inusitadas. Animal Mother diz “antes ele do que eu” (ou seja, minha sobrevivência acima de tudo); outro diz que morreram pela liberdade e lhe respondem que é apenas um massacre (ninguém acredita que estejam libertando um país, a propaganda ficou na América, ali a verdade não pode ser escondida).
- A canção final que, para os mais antigos é a melodia do clube do Mickey, parece uma cena em que as crianças vão embora alegremente após um dia de acampamento.
- No início, o corte de cabelo dos soldados tem o mesmo simbolismo da perda de cabelo de Sansão. É o fim da força, é a derrota à vista.
- Não há praticamente diálogos entre o sargento e seu esquadrão, tudo é na base dos palavrões, sarcasmo e ordens.
- A forma como Kubrik mostra a desumanização do soldado. Quando Pyle tem o seu derradeiro confronto, na véspera do embarque, com seu algoz, não por acaso, se resolve dentro de um banheiro em meio a latrinas. A analogia do sujo e podre (para evitar palavrões) é óbvia.
- No helicóptero Joker conversa com um atirador que se gaba de ter matado 157 vietnamitas entre mulheres e crianças e 57 Búfalos enquanto atira em camponeses e ri dizendo que “mulheres e crianças correm menos”. A vida não tem valor, pessoas viram um número a ser superado a cada dia. É a destruição da identidade individual que o cineasta já abordara em "A Laranja Mecânica".
- Em uma cerimônia fúnebre, cada um se despede com frases inusitadas. Animal Mother diz “antes ele do que eu” (ou seja, minha sobrevivência acima de tudo); outro diz que morreram pela liberdade e lhe respondem que é apenas um massacre (ninguém acredita que estejam libertando um país, a propaganda ficou na América, ali a verdade não pode ser escondida).
- A canção final que, para os mais antigos é a melodia do clube do Mickey, parece uma cena em que as crianças vão embora alegremente após um dia de acampamento.
O
grande mérito de Kubrick talvez tenha sido retratar a guerra com uma narrativa
bem diferente da convencional, deixando o espectador numa montanha russa de
emoções, fascinado com o modo com que o diretor faz o retrato da insanidade e
crueldade, através de momentos ou de atuações memoráveis do atores. Kubrick
consegue dar personalidade a todos os seus personagens e percebe-se que não tem
ninguém passeando pelo filme. Mesmo os que praticamente não tem falas
participam dentro de um contexto bem arquitetado. A câmera de Kubrick
parece olhar tudo. Suas tomadas sempre devem ser observadas. Como na cena dos
tanques que vão parecendo em segundo plano, enquanto a câmera acompanha
suavemente. Kubrick deu sua visão da guerra baseada no livro de Hasford na qual
citam ser frio e cruelmente detalhado. O que diferencia Nascido Para Matar dos
outros ? Talvez o fato do diretor não apelar para o sentimentalismo e deixar
para o espectador a função de explicar o que suas lentes mostram de uma forma
imparcial. Não há os bons vs o inimigo. Há dois lados distintos e cada um se
defende como pode. A cena de uma soldado, ferida, implorando para morrer é
chocante e a atitude dos soldados nos levam a várias reflexões. Muitas vezes
parece que o diretor dividiu suas histórias e as montou dentro do filme: A
chegada de Joker, a transformação de Pyle, sua visão do tormento, o confronto
com o atirador, a volta para o acampamento. Essa subdivisão se encaixou tão
perfeitamente que só pode ser notada ao final do filme.
"Platoon"
remexeu no complexo de culpa. "Apocalipse Now" é a insanidade da
Guerra. "Rambo" é o herói da redenção americana; "Amargo
Regresso" mostra o tratamento dado aqueles que ficaram mutilados. "Os
Rapazes da Companhia C" trata do absurdo da guerra. "Corações e
Mentes" um documentário essencial. Kubrick resolveu colocar o conceito de
que a guerra foi um erro e mostrou a desumanização dentro deste equívoco. No
final, o único objetivo numa guerra é estar vivo
Platoon |
Apocalypse Now |
Rambo |
Amargo Regresso |
Rapazes da Companhia C |
Trailer:
Curiosidades:
R. Lee Ermey foi um ex-fuzileiro, instrutor do centro Academia dos Fuzileiros Navais e foi ao front em 1968. Foi contratado para ser consultor (papel que exercera em Apocalipse Now), mas durante os teste com os atores, sua desenvoltura ( leia-se seus palavrões e atitudes) lhe deram o papel de sargento instrutor. Kubrick não viu o teste, recebeu um tape e ficou estupefato com o que vira. O ator superava todas as loucuras que o diretor procurava para o papel
R. Lee Ermey foi um ex-fuzileiro, instrutor do centro Academia dos Fuzileiros Navais e foi ao front em 1968. Foi contratado para ser consultor (papel que exercera em Apocalipse Now), mas durante os teste com os atores, sua desenvoltura ( leia-se seus palavrões e atitudes) lhe deram o papel de sargento instrutor. Kubrick não viu o teste, recebeu um tape e ficou estupefato com o que vira. O ator superava todas as loucuras que o diretor procurava para o papel
Baseado
no livro “The Short Times” de Gustav Hasford.
O Ator Vincent D'Onofrio (do seriado "Demolidor" da Neflix) engordou 31, 7 Kg sob a supervisão de um médico, para fazer o papel do atrapalhado Pyle (Revista set Ed 42, pag 09). O ator também fez o papel de mecânico na qual uma garotinha confunde com "Thor" no filme "Uma Noite de Aventuras" (1987)
Gustav
Jerry Hasford, co-roterista, foi correspondente de guerra junto à marinha
americana no conflito.
O diretor filmou o segundo arco em uma área industrial de Londres e plantou Palmeiras trazidas da Espanha.
Os cenários do Centro de Fuzileiros também foram construídos na Inglaterra.
Alguns prédios das locações em Londres tinham sido construídos pelo mesmo arquiteto francês que esteve em Huê.
O filme levou 7 anos para ser concluído.
Full Metal Jacket - É o nome de uma cápsula de bala encamisada, também chamada de FMJ, revestida de chumbo, cobre , níquel, aço ... que é mais resistente e capaz de trespassar o corpo humano causando hemorragias, ou grande destruição de órgãos, com a finalidade de incapacitar o alvo.
Full Metal Jacket - FMJ
Bala sem revestimento, com revestimento (FMJ) e “aberta”
Filmografia Parcial:
Matthew Modine:
Matthew Modine:
O
Exército Inútil (1983); Um Hotel Muito Louco (1984); Asas da Liberdade (1984);
Em Busca da Vitória (1985); Nascido Para Matar (1987) ; De Caso com a Máfia (1988); Memphis Belle - A
Fortaleza Voadora (1990); Morando com o Perigo (1990); Short Cuts - Cenas da
Vida (1993); E a Vida Continua (1993); A Ilha da Garganta Cortada (1995);
Blackout (1997); Carga Explosiva 2 (2005); Batman: O Cavaleiro das Trevas
Ressurge (2012); Medo Profundo (2017); Soldado (2017).
R. Lee Ermey:
Os Rapazes da Companhia C (1978); Marcados Pela Guerra (1984); Nascido Para Matar (1987); Mississipi Em Chamas (1988); Rebeldes e Heróis (1991); Sommersby: O Retorno de um Estranho (1993); Os Invasores de Corpos: A Invasão Continua (1993); Em Terreno Selvagem (1994); Corra que a Polícia Vem Aí 33 1/3 - O Insulto Final (1994); Assassinato em Primeiro Grau (1995); Despedida em Las Vegas (1995); Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995); Os Últimos Passos de um Homem (1995); Prefontaine (1995); O Massacre da Serra Elétrica (2003); O Massacre da Serra Elétrica: O Início (2006);
Cuidado
com Meu Guarda-costas (1980); Gente Como a Gente (1980); Jovens sem Rumo
(1984); Predador 2 - A Caçada Continua (1990); Radio Flyer (1992); Três Desejos
(1993); Independence Day (1996); O Patriota (2000) e participações em seriados
Dorian Harewood:
S.O.S. - Submarino Nuclear (1978); Paixões Violentas (1984); A Traição do Falcão (1985); Nascido Para Matar (1987); Morando com o Perigo (1990); Morte Súbita (1995); 12 Homens e uma Sentença (1997); Na Companhia do Medo (2003); Assalto à 13ª Delegacia (2005) e participações em séries
Vincent D'Onofrio
Nascido Para Matar (1987); Uma Noite de Aventuras (1987); Juggers - Os Gladiadores do Futuro (1989); Tudo por Amor (1991); JFK: A Pergunta que Não Quer Calar (1991); O Jogador (1992); A Pele do Desejo (1992); Ed Wood (1994); Estranhos Prazeres (1995); Um Amor do Tamanho do Mundo (1996); Desafio Sem Limites (1996); MIB: Homens de Preto (1997); Newton Boys - Irmãos Fora-da-Lei (1998); A Cela (2000); Impostor (2001); A Sombra de um Homem (2002); Atraídos Pelo Crime (2009); Lei e Ordem: Crimes Premeditados (seriado 2001-2011); Fogo Contra Fogo (2012); Rota de Fuga (2013); O Juiz (2014); Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros (2015); Demolidor (seriado 2015 - 2016); Pelé: O Nascimento de uma Lenda (2016); Sete Homens e um Destino (2016); O Chamado 3 (2017); CHIPS (2017); Desejo de Matar (2017).
Sucintamente falando, um grande filme de guerra. Claro que há obras superiores, mas trata-se de um longa-metragem realista, cru e violento. R. Lee Ermey deu show, embora pareça repetir seus vilões anteriores, mas funciona bem com seu sádico personagem. Grande abraço e congratulo pela excelente resenha.
ResponderExcluirBom dia Janerson. Kubrick fez um grande filme de guerra. É uma vertente desse episódio que tanto traumatizou os envolvidos. Difícil dizer qual o melhor filme ou ainda estará por vir. R. Lee Ermey deu um show nesse papel e Vicent D'Onófrio (atualmente mais em evidência no cinema) também será sempre lembrado. Um grande abraço e obrigado por comentar essa entre tantas outras resenhas.
ExcluirBoa noite. Kubrick era um cineasta genial basta olharmos sua filmografia. A escolha do elenco foi muito feliz e também acho que D'Onofrio teve uma atuação marcante nesse ótimo filme. Eu que sou fã de obras como Os Canhões de Navarone, Fugindo do Inferno, Os Doze Condenados e A Ponte do Rio Kwai, vi em Nascido para Matar um grande sopro de renovação nesse gênero que sofria com coisas como Rambo, por exemplo. Muito obrigado pelas palavras elogiosas e esteja certo que, sempre que possível estarei aqui dando minha opinião sobre alguns filmes. Grande abraço e vida longa ao site.
ExcluirGrandes filmes e clássicos. Em algum momento estarão por aqui. Já são mais de quinhentas resenhas com pesquisas em veículos confiáveis o que leva mais tempo, mas garante qualidade. E sim, tomara que durante muito tempo. Um grande abraço.
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