terça-feira, 1 de dezembro de 2015

MUITO ALÉM DO JARDIM / BEING THERE (1979) - ESTADOS UNIDOS



UM TOLO CONFUNDIDO COM UM SÁBIO
(o texto contém spoliers)
 
Chance (Perter Sellers) é um homem que nunca saiu da mansão em que vive em Washington. Só conhece o mundo pela tela da teve,  sua única fonte de conhecimento. Imita frases e trejeitos de quem que assiste. Seu patrão morre, a empregada vai embora e os advogados que cuidam do espólio chegam para fechar a casa, sendo surpreendidos por aquela figura estranha que alega ser o jardineiro, mas que não consta em nenhum dos registros dos empregados do falecido. Chance não sabe ler ou escrever e nunca entrou em um carro. Sequer passara pelo portão da mansão. Agora é obrigado a vagar sem rumo, sem documentos e sem um nome completo. Não compreende o mundo nem as pessoas. Não entende o que se passa ao redor.


Sua vida muda quando uma limusine  acerta sua perna, causando-lhe uma lesão. Sua passageira, Eve (Shirley MacLaine), resolve levá-lo para sua mansão que possui médicos que cuidam de seu marido. Ao dizer o seu nome, entendem como Chauncey Gardiner  (ou, na versão dublada, Chauncey Jardim). O marido de Eve, Benjamin Rand (Melvyn Douglas), um rico e influente empresário, simpatiza com “Chauncey” e o apresenta em uma reunião ao Presidente dos Estados Unidos. Este acaba pedindo a opinião de Chauncey sobre sua ideia de uma nova política econômica. A resposta é interpretada como algo incrivelmente profundo e revelador, mal sabendo que Chauncey, por não compreender a pergunta, respondeu como um jardineiro que cuida de plantas em um jardim.


O presidente faz uma pergunta sobre suas medidas econômicas, Chauncey responde sobre frutos, raízes e estações do ano. A interpretação faz com que o presidente faça um discurso citando-o pela ajuda. Logo vira celebridade, indo até em um programa televisivo em rede nacional. Chance, a pedido do presidente, é investigado pelos agentes de segurança, mas ninguém consegue obter nenhuma informação sobre seus antecedentes ou sua vida pregressa.

Comédia satírica, cujo interprete principal, Peter Sellers, vive um tolo que é confundido com um sábio. O filme, talvez o melhor momento do ator, amealhou diversos fãs tanto por parte do público como da crítica, que viu um filme acima da média, com uma mensagem muito bem escrita e dirigida.


Existiu uma linha muito tênue do personagem principal ter sido transformado, pelos envolvidos na produção, num idiota ou débil mental. Sellers soube colocar o timing certo, fazendo um adulto inocente; uma criança grande, pura, um tanto tola, que começa a conhecer o mundo. Só que em idade avançada. Ele não se misturou ao mundo impuro, por isso não consegue entender o que as pessoas falam. Responde dentro de seu (pouco) conhecimento. A maioria das pessoas entende suas falas de um modo diferente, outros, mais hipócritas, não entendem nada, mas fingem entender para se passarem por pessoas cultas. Essa interpretação errônea de suas palavras, o leva a aconselhar um Presidente  em sua política econômica. O transforma em celebridade instantânea sendo convidado para uma  entrevista em rede nacional.  Sua saída de seu mundo encantado para o mundo real o credencia a ser um dos homens mais influentes do mundo (sim, porque aconselha o Presidente da maior nação do mundo).  O mundo nas mãos (ou ideias) de uma pessoa completamente despreparada. E os idiotas de verdade não conseguem decifrá-lo. Sua falta de inteligência é tomada como uma silenciosa sabedoria. Se alguém parece ser inteligente, logo o é. Então quem não o compreende é na verdade um burro


Uma sátira inteligentíssima à superficialidade da sociedade e da mídia, que absorve fatos e ideias, as aceita e replica, permitindo a certas pessoas que  digam o que é certo ou errado em seu país e nas vidas de seus pares. O mundo hoje se tornou pior. O que uma pessoa influente fala é considerado verdade. Um analista econômico fala na TV e todos replicam como se fossem experts. Depois todos esquecem e uma nova teoria surge daquele que já é considerado um formador de opinião. Uma sociedade criando sábios a partir de idiotas. Talvez o autor do livro de 1972, Jerzy Kosinkky, não pudesse imaginar um futuro tão ainda mais assustador que seu livro.


Peter Sellers perdeu o Oscar de melhor ator para Dustin Hoffman em "Kramer vs Kramer", outro filme muito bem realizado e com temática bastante forte para uma época em que a separação conjugal e guarda dos filhos ainda era motivo de muito debate. Difícil dizer se foi justo ou não. Sellers teve uma atuação antológica neste filme. Sua melhor dentre vários filmes célebres (como “Um Convidado Bem Trapalhão”). Em compensação, Melvin Douglas levou o de Melhor Ator Coadjuvante com o seu moribundo Sr Rand. Foi um ano difícil para Muito Além do Jardim, pois seus concorrentes eram pesos pesados: o já citado “Kramer vs Kramer”; a neurose da guerra de “Apocalipse Now”, o musical “All That Jazz: O Show Deve Continuar” e “Justiça Para Todos” com Al Pacino.


O diretor Hal Asbhy  (1929–1988), de filmes como “Shampoo” com Warren Beauty; “Amargo Regresso” com John Voight e Jane Fonda e “Ensina-me a Viver” com Ruth Gordon sabia como contar uma história de uma forma meio lírica e sentimental. Aqui tudo poderia ter dado errado, pois é uma história difícil de se transportar para às telas e, na forma de comédia, quase uma loucura, mas a sutileza das situações fez a diferença. Aliás sutileza essa que podemos perceber no relacionamento entre Eve (Shirley MacLaine excelente) e Chauncey. O público poderia não comprar a ideia de uma esposa de um moribundo apaixonar-se por outro homem, enquanto seu marido definhava-se. Mas a direção de Asbhy soube contornar de maneira brilhante essa faca de dois gumes, num relacionamento bem discreto que faz com que torçamos pelo novo par romântico. MacLaine consegue ganhar o público em sua cena de sedução infantil, pondo-se no mesmo universo de Chance. O diretor soube também aproveitar esse momento, dentre vários,  para mostrar que o amor não tem julgamentos ou racionalidade. O que o espectador percebe é que Asbhy usou a comédia para levar à reflexão. Enquanto assistimos as situações insólitas que são produzidas (não por acaso), somos abastecidos com reflexões que ficam após o filme. Algumas situações parecem absurdas? Sim e aí está a sutileza do filme: fazer com que pensemos em Chance, nos que o cercam e os que o bajulam em tudo, de um jeito divertido e, aparentemente, despretensioso. Chance ou Chauncey só sabe responder como se resolvesse seus problemas no jardim e ninguém percebe. Tomam-no, um simples jardineiro, por um guru enigmático.


Para não dizer que tudo são flores neste filme, algo que me incomodou: foi uma longa cena em que nos é apresentado (leia-se jogam em nossos ouvidos) trechos da composição de Strauss “Assim Falava Zaratustra” com arranjos do brasileiro Eumir Deodado. A reprise contínua da melodia enjoa rapidamente e mesmo que a cena não seja tão longa, não foi uma boa escolha. Mas o restante do filme se desapega dessa composição repetitiva e nos apresenta arranjos mais melodiosos.


Quanto ao elenco, não há muito a contestar: o casal central está soberbo. Melvyn Douglas ganhou o Oscar por sua atuação, Jack Warden sempre em grandes atuações faz um ótimo presidente. Como curiosidade, temos o ator Richard Basehart (o eterno "Almirante Nelson" do famoso seriado "Viagem ao Fundo Mar") na pele do embaixador russo Vladmir Srapinov, que conversa com chance, lhe fala em russo e, como Chance ri, Srapinov passa a acreditar que este entende a língua russa. Agora todos passam a acreditar que Chance fala várias línguas. Richard Dysart (1929–2015),  como o Dr. Robert Allenby,  numa atuação bem simpática, talvez seja o único realmente a descobrir quem Chance é realmente.  


Muito Além do Jardim perdeu-se um pouco no tempo, principalmente por seu visual envelhecido através do anos, mas sua narrativa e ideia central ainda passa uma mensagem muito poderosa, muito mais ainda neste novo século em que as pessoas parecem cada vez menos propensas a pensar por conta própria ou buscar conhecimento. Indicado para aqueles que buscam produções inteligentes e de bom gosto. Um dos melhores exemplares do que foi feito nos emblemáticos anos 70.



Trailer:





Curiosidades (contém spoilers):
 
Peter Sellers faleceu de ataque cardíaco aos 54 anos. O ator teve duas indicações ao Oscar de Melhor Ator por "Dr Fantástico" (1964) e "Muito Além do Jardim"  (1979). Houve uma terceira indicação pela participação no filme  "The Running Jumping & Standing Still Film".

Jack Warden faleceu, aos 85 anos, em decorrência de problemas cardíacos e renais.

Richard Basehart faleceu, aos 70 anos, de Derrame Cerebral.

Shirley MacLaine  ganhou o Oscar por "Laços de Ternura" (1983) e teve indicações em cinco oportunidades, além de diversas premiações ao longo da carreira.

O diretor ganhou o Oscar de melhor edição por “No Calor da Noite” (1967). No quesito direção, foi indicado pelo filme "Amargo Regresso" (1978)

Levou quase nove anos para Peter Sellers conseguir que este filme fosse feito por um estúdio, principalmente porque na década de 1970 a carreira de Sellers chegou ao fundo do poço e nenhum estúdio em Hollywood trabalharia com ele. Após o renascimento (e sucesso) dos filmes da Pantera Cor-de-Rosa, a Lorimar Pictures finalmente deu sinal verde ao projeto.

Peter Sellers modelou a voz de Chance, o jardineiro, com base em seu ídolo, Stan Laurel (da famosa dupla O Gordo e o Magro).

Peter Sellers foi indicado ao Oscar de Melhor Ator. Alguns disseram que a razão pela qual Sellers perdeu foi por causa dos "outtakes" (cena ou sequência filmada ou gravada para um filme ou programa, retirada na versão levada às telas) no final do filme, enquanto os créditos estão rolando. O próprio Sellers disse mais tarde que os "outtakes" "quebraram o feitiço" do filme.

Todo contrato assinado por Peter Sellers incluía uma cláusula que estipulava que suas acomodações deveriam ter a cama voltada para o leste-oeste. Chance diz: "Gosto de dormir com a cabeça voltada para o norte". O advogado com quem ele está diz: "Mas esta cama está voltada para o oeste!"

Na cena em que Chance decide tentar beijar Eve, ele está assistindo Crown, o Magnífico (1968) de 1968 na televisão. Hal Ashby, o diretor deste filme, foi o editor desse filme.

A então esposa de Peter Sellers, Lynne Frederick, estava originalmente programada para ter um papel no filme, mas seu psiquiatra os aconselhou a não trabalharem juntos. Ela o acompanhava ao set todos os dias para lhe dar apoio emocional.

Henry B. Dawkins, que interpreta Billings, o técnico de raios-X, era realmente um técnico de raios-X. Na década de 1990, tornou-se chefe do Departamento de Radiologia da Asheville-Buncombe Technical Community College em Asheville, Carolina do Norte, um dos locais de filmagem deste filme.

O personagem Lolo (o garoto que dá a Chance a mensagem para levar de volta para Raphael) é interpretado por Oteil Burbridge, futuro baixista do The Allman Brothers.

A caracterização de Chance foi inspirada por um verdadeiro jardineiro que trabalhou para Peter Sellers

Burt Lancaster foi considerado para o senador Benjamin Rand.

Incluído entre os "1001 filmes que você deve ver antes de morrer", editado por Steven Schneider.

A inscrição "A vida é um estado de espírito" está no túmulo de Rand e também serve como a última linha do filme. Essas palavras também foram inscritas no próprio túmulo de Peter Sellers, quando ele morreu um ano após o lançamento do filme.

Originalmente, havia uma última cena diferente planejada para a sequência do funeral no final do filme. O diretor Hal Ashby estava conversando com outro diretor um dia sobre as filmagens quando comentou como tudo estava indo bem. "É como andar no ar", disse ele, então de repente foi atingido por um pensamento. Ele mudou a última cena para a que agora aparece no filme.

O Conselho de Controle de Publicações da África do Sul ordenou que os minutos finais deste filme fossem cortados da impressão de lançamento sul-africana porque a cena que mostra Chance andando na superfície da água "poderia ​​ofender muitos cristãos sul-africanos".



Breve Filmografia:
 
Peter Sellers (1925–1980)











O Pequeno Polegar (1958); Lolita (1962); A Pantera Cor-de-Rosa (1963); Dr. Fantástico (1964); Casino Royale (1967); Um Convidado Bem Trapalhão (1968); A Volta da Pantera Cor-de-Rosa (1975); Assassinato por Morte (1976); A Nova Transa da Pantera Cor de Rosa (1976); A Vingança da Pantera Cor-de-Rosa (1978); O Prisioneiro de Zenda (1979); Muito Além do Jardim (1979); O Diabólico Dr. Fu Manchu (1980).



Shirley MacLaine:









O Terceiro Tiro (1955); Artistas e Modelos (1955); A Volta ao Mundo em 80 Dias (1956); Se Meu Apartamento Falasse (1960);  Onze Homens e um Segredo (1960); Irma la Douce (1963); Os Abutres Têm Fome (1970) ; Muito Além do Jardim (1979); Casais Trocados (1980); Laços de Ternura (1983); Um Rally Muito Louco (1984); Madame Sousatzka (1988); Flores de Aço (1989); Lembranças de Hollywood (1990); O Guarda-Costas e a Primeira Dama (1994); A Feiticeira (2005); Um Amor para Toda a Vida (2007); A Vida Secreta de Walter Mitty (2013).




Jack Warden (1920–2006):










A Um Passo da Eternidade (1953); 12 Homens e uma Sentença (1957); O Aventureiro do Pacífico (1963); Árvore da Solidão (1971); Shampoo (1975); Todos os Homens do Presidente (1976); O Grande Búfalo Branco (1977); O Céu Pode Esperar (1978); O Campeão (1979); Justiça Para Todos (1979); Muito Além do Jardim (1979); Uma Batalha Particular (1979); O Veredicto (1982); Mais Forte Que o Ódio (1988); O Crime Que o Mundo Esqueceu (1990); O Pestinha (1990);  O Pestinha 2 (1991); Tiros na Broadway (1994); Poderosa Afrodite (1995); Virando o Jogo (2000).

Melvyn Douglas (1901–1981) 









A Casa Sinistra (1932); O Vampiro (1933); A Volta do Lobo Solitário (1935); Marujo Intrépido (1937); A Mulher Proibida (1938); Ninotchka (1939); O Marido da Solteira (1940); A Noiva de Meu Marido (1941); Tormento (1947); Abismos do Desejo (1951); O Vingador dos Mares (1962); O Indomado (1963); Meu Pai, um Estranho (1970);  O Inquilino  (1976); Muito Além do Jardim  (1979) Intermediário do Diabo (1980); Histórias de Fantasmas (1981).



Richard Basehart (1914 -1984):










A Estrada da Vida (1954); A Trapaça (1955); Moby Dick (1956);  Os Irmãos Karamazov (1958); Cidade Nua (1962); Os Reis do Sol (1963); O Único Sobrevivente; (1970); A Fuga dos Homens Pássaros (1971); O Caçador de Recompensas (1972); Pânico em Munique (1976); Degraus Para o Passado (1976); A Ilha do Dr. Moreau (1977);  Grandes Heróis da Bíblia (1979).



Richard Dysart (1929–2015)










Petúlia, um Demônio de Mulher (1968); O Homem Terminal (1974); O Dia do Gafanhoto (1975); O Dirigível Hindenburg (1975); O Inimigo do Povo (1978); A Semente do Diabo (1979); Meteoro (1979); Muito Além do Jardim (1979); O Terror do Dr. Mudd (1980); Epidemia (1981); Norma Rae (1981); O Enigma de Outro Mundo (1982); A Traição do Falcão (1985); Marcas do Destino (1985);  O Cavaleiro Solitário (1985); Sinal de Perigo (1985); Fugitivos de Alcatraz (1987); Wall Street: Poder e Cobiça (1987); Os Senhores do Holocausto (1989); De Volta para o Futuro III (1990); Panteras Negras (1995); O Sequestro (1995); Tempestade (1998); Spawn (seriado 1997-1999).

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