terça-feira, 22 de dezembro de 2015

RASHOMON (1950) - JAPÃO



O FILME QUE ABRIU AS PORTAS DO CINEMA JAPONÊS PARA O MUNDO
(o texto contém spoliers) 

Rashomon é daqueles filmes cuja análise é uma das mais difíceis de serem feitas porque não há nada mais que deva ser dito que já não tenha sido dissecado por críticos da imprensa ou na Internet. Por isso essa análise será melhor apreciada por aqueles que nunca tiveram contato com esta que é considerada uma obra-prima e uma das mais importantes do cinema de todos os tempos. O espectador mais jovem pode pensar: já vi outros filmes com o mesmo tema e até melhores, mas aí é que está o grande diferencial: este filme criou outros filmes e não se aproveitou de outra produção. O ângulo como o filme foi abordado foi algo inovador nos idos dos anos 50 e tomou os críticos ocidentais de entusiasmadas críticas. Vamos a análise deste filme único:
O filme se inicia com três pessoas: um lenhador, um sacerdote e um homem do campo. Os dois primeiros resolvem contar uma história que vem intrigando a todos no povoado e, diante da chuva torrencial que cai, para passar o tempo, o colono resolve escutar o relato do lenhador:


Este estava caminhando pela floresta 3 dia antes à procura de madeira quando encontrou objetos pessoais atirados ao solo. Seguindo o rastro, encontrou um homem morto e correu para avisar à polícia. Ele relata às autoridades o que viu. Quando perguntado se viu alguma arma ou punhal alega que não.


O segundo homem a testemunhar, o sacerdote,  alega ter visto um homem com arco e flecha e uma espada levando uma mulher coberta com um véu em um cavalo branco passando pela estrada


O terceiro homem chega com um homem amarrado que capturara e que se chama Tajomaru, um notório bandido, conhecido e perigoso. Dois dias antes ele caminhava, quando avistou, caído ao solo, o bandido com um arco e um cavalo branco e conclui em seu depoimento que o Tajomaru caíra do cavalo que roubara.
 
 
Tajumaru resolve falar e informa que não caíra do cavalo e sim estava fazendo “suas necessidades fisiológicas” e que irá contar a verdade: ele viu o casal passando pela floresta e fingiu possuir  uma espada antiga e utensílios que havia encontrado na floresta e que gostaria de vender. O samurai o acompanha desconfiado por um longo caminho até ser subjugado pelo bandido e amarrado. Voltou a mulher e lhe informou que seu marido ficara doente e a leva até o marido. A mulher que tinha um punhal o ataca ferozmente, mas acaba vencida e estuprada. Tajumaru informa que a mulher parecia ter gostado, mas ao ir embora a mulher lhe diz que foi desonrada e que ele e seu marido devem lutar até a morte onde o vencedor ficará com ela. Ele desamarra o samurai, lhe dá uma espada e combatem.  Tajumaru mata o samurai “com honra”. Ao procurar a mulher, ela havia desaparecido. Quanto a espada, trocou na cidade por bebida. Quanto ao punhal, apesar de ser valioso, esquecera de pegá-lo.
  
O lenhador informa ao colono que a história da mulher era completamente diferente e que não mostrava em seu rosto qualquer sinal da ferocidade que o bandido relatara.


A terceira testemunha é a mulher que relata que, após estuprá-la, Tajumaru se vangloriou de ser um bandido e fugiu. Ao voltar para soltar o marido, esse passou a olhá-la com repugnância. Ela pede ao marido que a mate e desmaia. Quando acorda vê o marido morto, sai do bosque e tenta o suicídio.

 
A quarta testemunha é o marido morto que o lenhador diz ter falado por uma médium. O marido relata que, após o estupro, a mulher fala para Tajumaru que queria seguir com ele e que teria que matar o marido, mas este se revoltou e perguntou ao marido se deveria mata-la. A mulher fugiu e o bandido foi  em seu encalço. Voltou de mãos vazias e  o libertou. Este, desonrado  e envergonhado, cometeu suicídio e agora vive nas trevas, mas percebera que alguém silenciosamente retirara o punhal.

 
O colono percebe uma inconsistência na história do lenhador e este lhe diz que não contara a história toda às autoridades para não ficar comprometido, mas que agora relatará o que realmente acontecera.


O grande diferencial de Rashomon (que é o nome da vila onde o lenhador, o sacerdote e colono estão) é o conceito de como uma mesma história pode ter vários pontos de vistas conflitantes, dependendo do momento em que a pessoa presencia o acontecimento e como as pessoas mentem ou omitem fatos para que o julgamento das autoridades lhes favoreçam. Até o lenhador contar o que realmente presenciara, o espectador fica preso à história que até parece teatral com início bem lento, dando a impressão de que o filme será longo e cansativo, porém o que se vê na tela é um filme denso que levanta várias questões como caráter, moralidade, crenças sociais e os valores do Japão da época, mostrando um sacerdote que ficou descrente com o ser humano e os valores, mas que no final ainda vê um algo de positivo na humanidade. Talvez o grande enigma deste filme esteja ligado ao punhal: se soubermos o que aconteceu a ele, muito do mistério se resolverá.


Este filme ao levar o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1951, além de colher todas as atenções para um cinema que era desconhecido, abriu as portas para o mercado ocidental. O diretor Kurosawa realizaria ainda diversas obras, entre elas, outra considerada obra-prima : “Os Sete Samurais”. Rashomon não teve boa receptividade em seu país à época do lançamento do filme. Foi considerado longe das raízes japonesas e próximo ao ocidente. Só que o Ocidente percebeu a força e originalidade que a produção carregava , inclusive no Brasil, na qual os críticos da época se renderam ao filme e a sua história original


A importância de Rashomon é tão grande que até hoje temos filmes que lançam sua temática. O termo virou referência em universidades e quase todos se referiam ao título do filme quando queriam dizer que uma história era confusa e com várias versões contraditórias. O chamado efeito Rashomon na psicologia.  Kurosawa pegou o conto “Dentro de um Bosque” de Ryūnosuke Akutagawa e o adaptou. Um tema atemporal. Passado mais de 60 anos da criação da obra, ainda é atualíssimo, apenas na ambientação e por ser em preto e branco é que se percebe ser muito antigo. Tudo isso fez Rashomon adquirir o status de um dos melhores filmes já feitos, tendo cartaz de cinema, na época,  informando que seria “ o melhor filme do mundo”. Kurosawa teve a oportunidade de lançar seu “Os Sete Samurais” que virou filme Hollywodiano no faroeste “Sete Homens e um Destino”, além de vários filmes com a mesma temática como “ Os Sete Magníficos Gladiadores” ou “Mercenários das Galáxia”. Podemos citar também Dersu Uzala, Kagemusha e Ran como grandes produções dirigidas pelo mestre Kurosawa.


Quanto ao elenco, sem dúvida Toshiro Mifune é o grande nome deste filme. Sua interpretação zombeteira e desafiadora torna o filme ótimo, aliada a interpretação da atriz Machiko Kyô que faz uma Masako perfeita, de acordo com a versão da história que é contada. Ela transmite suavidade, fúria , pureza, tristeza, ódio e pena,  algo muito difícil de ser feito em um filme que exige várias interpretações. Mifune ficou famoso e fez inúmeras produções, inclusive americanas, como “Inferno no Pacífico” de 1968 ao lado de Lee Marvin.


Rashomon  foi indicado ao Oscar (1953) no quesito melhor direção de arte em preto e branco e merece ser visto por todos aqueles que buscam conhecer os grandes filmes que já foram feitos e não apenas o “filme do momento” ou o “blockbuster”. Quem quer conhecer o cinema a fundo tem que assistir grandes obras e esta aqui se inclui perfeitamente.
 

Curiosidades:

O conto “Dentro do Bosque” teve algumas adaptações para o Cinema e podemos citar os filmes:  "The Outrage" (1964); "Iron Maze" (1991); "In a Grove"( 1996);  e "Misty" (1997) e inúmeras citações em seriados e artigos.

Kurosawa e Mifune trabalharam juntos em 16 filmes.

Um dos primeiros filmes a trabalhar como câmera portátil

O diretor de fotografia, Kazuo Miyagawa foi de grande valia com técnicas de inovação como o uso de luz natural através de espelhos.

Prêmio de Oscar Honorário de Melhor Filme Estrangeiro (1952).

Entre 1948 e 1956 a Academia só concedia estes títulos honorários. A partir de 1957 foi criada oficialmente a categoria Melhor Filme Estrangeiro que perdura até hoje.

Muitas vezes creditado como a razão pela qual a Academia criou a categoria "Melhor Filme Estrangeiro".

Este filme é frequentemente creditado pela primeira vez que uma câmera foi apontada diretamente para o sol. Na biografia de Akira Kurosawa, ele dá crédito ao seu diretor de fotografia por "inventá-lo" e a si mesmo por usá-lo, mas anos depois, durante os comentários que antecederam a exibição do filme na TV, o chefe do estúdio reivindicou o crédito. Kurosawa negou duramente essa afirmação.

Durante as filmagens, o elenco abordou Kurosawa em massa com o roteiro e perguntou: "O que isso significa?" A resposta que Akira Kurosawa deu na época e também em sua biografia é que Rashomon é um reflexo da vida, e a vida nem sempre tem significados claros.

A placa "Rashomôn" do portão foi preservada e mantida pelo diretor de fotografia Kazuo Miyagawa em sua casa até sua morte em 1999.

Mesmo durante o meio-dia, as partes da floresta em que a equipe precisava filmar ainda estavam muito escuras. Em vez de usar um refletor de folha comum, que não refletia luz suficiente, Akira Kurosawa e o diretor de fotografia Kazuo Miyagawa optaram por usar um espelho de corpo inteiro "emprestado" do departamento de figurino da Daiei. A equipe refletiu a luz do espelho através de folhas e árvores para suavizá-la e torná-la mais parecida com a luz do sol natural. Mais tarde, Miyagawa o chamou de efeito de iluminação de maior sucesso que ele já havia feito.

Quando o filme foi lançado internacionalmente com ótimas críticas, muitos especularam que Akira Kurosawa foi influenciado por Cidadão Kane (1941) no elemento de flashbacks que acabam por fornecer relatos conflitantes de eventos. No entanto, Kurosawa não viu o filme de Orson Welles até vários anos após o lançamento de 'Rashômon'.

Nas cenas de chuva que mostram o Rashomon Gate, Akira Kurosawa descobriu que a chuva ao fundo simplesmente não aparecia contra o pano de fundo cinza claro. Para resolver esse problema, a equipe acabou tingindo a chuva despejando tinta preta no tanque da máquina de chuva. A tinta é claramente visível no rosto do Lenhador pouco antes da chuva parar.

Em sua autobiografia, Akira Kurosawa lembrou que um dos maiores problemas que sua equipe encontrou durante as filmagens na floresta foi que as lesmas continuavam caindo das árvores sobre suas cabeças. O elenco e a equipe tiveram que se banhar constantemente com sal para manter as lesmas afastadas.

O filme foi aclamado pelos críticos japoneses, com muitos deles tendo grandes esperanças de que o filme encontrasse sucesso de bilheteria no ocidente. Quando foi lançado, tornou-se o filme japonês de maior bilheteria nas bilheterias dos EUA, mas ganhou apenas um total de US $ 200.000 em um período de dois anos. Os críticos no Japão ficaram com o coração partido porque, apesar de todos os elogios e aclamações que o filme recebeu, não foi o sucesso de bilheteria que esperavam. Rashômon continuaria a deter o recorde de filme japonês de maior sucesso nas bilheterias dos EUA até o lançamento de um certo filme de monstro gigante no final daquela década.

Diretores como Federico Fellini, Woody Allen, Satyajit Ray, Ingmar Bergman e John Huston consideram este como um de seus filmes favoritos.

"Rasho" significa "cidadela". "Mon" significa "portão".

Duas vezes refeito (sem muito sucesso) como filmes americanos - "The Outrage" em 1964, que transforma a história em um western, e "Iron Maze" em 1992, que transforma a história em um thriller policial moderno. Também foi transformado em peça da Broadway em 1959; esta versão também recebeu produções de TV na América e na Grã-Bretanha.


Trailer: 





Filmografia Parcial:

Toshiro Mifune (1920–1997)
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O Anjo Embriagado (1948); Rashomon (1950); O Idiota (1951); A Vida de O'Haru (1952); Os Sete Samurais (1954); Anatomia do Medo (1955); Trono Manchado de Sangue(1957); O Homem do Riquixá (1958);A Fortaleza Escondida (1958); Yojimbo - O Guarda-Costas (1961); Grand Prix (1966);Inferno no Pacífico (1968); Morte no Inverno (1979) ; 1941 - Uma Guerra Muito Louca (1979); Shogun (A SÉRIE) 1980; A Mulher Prometida (1994)



Akira Kurosawa (1910 -1998)

 









O Anjo Embriagado (1948);Rashomon (1950); Os Sete Samurais (1954); Yojimbo - O Guarda-Costas (1961); Sanjuro (1962); Dersu Uzala (1975);  Kagemusha, a Sombra de um Samurai (1980); Ran (1985); Sonhos (1990); Rapsódia em Agosto (1991);

2 comentários:

  1. Bom dia Scant.
    Realmente Hashomon é um dos grandes clássicos do cinema. Obrigado pela participação e volte sempre. um grande abraço.

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