"EU NÃO GOSTO QUE AS COISAS MUDEM"
A
época é 1949. O Sargento da Polícia Militar Getúlio Santos Bezerra (Lima
Duarte), a serviço do PSD, recebe a missão de escoltar um prisioneiro e inimigo
político de seu patrão, tido como subversivo (Fernando Bezerra), da cidade de Paulo
Afonso (Bahia) até Aracaju, atravessando as estradas de Sergipe, junto com seu
amigo e motorista Amaro (Orlando Vieira). Getúlio fala sem parar, emenda um
pensamento no outro, confunde o espectador, mas segundo seu pensamento é para
não dormir e, assim, manter os olhos bem abertos em seu prisioneiro. No meio do
caminho algo acontece: vem uma ordem de seu chefe que o panorama político mudou
(leia-se: a notícia se espalhou e as cabeças dos grandes vão rolar). Getúlio
deve soltar seu prisioneiro e esquecer o ocorrido. Ele ignora a ordem e, na
melhor síntese da frase “missão dada, é missão cumprida !”, resolve, por conta
própria, levar seu prisioneiro até o seu destino, independente das forças que
lhe atravessem o caminho, mesmo isto que custe sua vida. Getúlio, aos
poucos, revela o seu lado obscuro e obstinado, beirando quase a loucura. Mesmo
compreendendo as novas ordens, ele resolve fazer o que julga certo.
Sargento
Getúlio foi extraído do romance “Memórias do Sargento Getúlio” de João Ubaldo
Ribeiro. Getúlio é um homem com pouca capacidade de discernimento. Odeia seu
prisioneiro e só não o executa devido seus princípios, que são cumprir o que lhe
fora inicialmente pedido: entregar o prisioneiro até Aracaju e, agora, tomar
satisfações com seu chefe que mudara de ideia. Mas isso não impede que o
sargento resolva torturar de forma cruel seu prisioneiro quando este lhe
desagrada. Seja psicologicamente, descrevendo as diversas maneiras que conhece
de causar dor ou mutilação, seja na prática fazendo o que considera justiça quando o prisioneiro se envolve com a filha de um fazendeiro, que lhe acolhera, chamado Nestor.
Getúlio revela-se ao longo do filme um matador, com mais de 20 mortes nas
costas, apesar de se dizer político. Na verdade é um soldado profissional. Em
determinada cena é cercado em uma fazenda e, junto com Amaro e o grupo de seu
Nestor, resolve que não entregará o prisioneiro. O Tenente (Antônio Leite) que
lhe traz as ordens e vem com um destacamento, mas não impressiona Getúlio que
saca seu revolver e parte para o confronto. A conclusão é terrível: Getúlio
luta com o tenente e lhe decapita. Sua atitude não lhe assusta e não entende
porque tamanho alarde com uma cabeça cortada. O sargento é um homem sofrido e
embrutecido pela violência. O que lhe incomoda são as mudanças que ocorrem no
mundo ou na sua realidade cotidiana. Mudar significa refletir e Getúlio não
gosta de refletir. Gosta das coisas imutáveis, para que sua cabeça “não doa”.
Agora Getúlio será caçado, levando seu prisioneiro ensanguentado e sem forças à
pé pelas estradas e matas do norte da Bahia.
Getúlio
não se importa com seu prisioneiro, que considera um homem abaixo da escala
humana (e que se refere a ele como: “isso aí”; “o coisa”; “traste”; “esse
lixo”...) que quer prejudicar o mundo com seu pensamentos que não compreende e
não quer compreender. O sargento não sabe porque o odeia, mas este não deve ser
uma boa pessoa, senão seu chefe não o teria incumbido de algo tão importante. É
um homem que, apesar de tudo, possui um código honra. Empenhou sua palavra de
que cumpriria sua missão, mas vê que seu chefe não faz o mesmo. Se não ama,
odeia. E se odeia é pra valer. Sem arrependimentos. Sem contestações. Sem
reflexões (apenas acerca do que está ocorrendo no momento). É um personagem
contraditório, um anti-herói, com uma história rica que leva à várias reflexões
sociais.
Em determinado momento, Getúlio conversa com Luzinete (sua amada) e fala que, se
tivesse outra vida, seria cangaceiro. Lampião morreu em 1938. Getúlio está em
1949, ou seja, 11 anos após a morte do bandoleiro. Curiosamente, Getúlio
não está no cangaço, ele funciona como um agente da lei. Alguém que iria
combater Lampião. Muito se explica da personalidade do sargento quando
refletimos sobre a época, os costumes, mitos e crenças nordestinos.
Com
momentos de narração em off, com o sargento comentando suas atitudes e as
consequências que poderão surgir, a história vai apresentando personagens bem
interessantes: um padre que carrega uma metralhadora e que diz: “ou dá um fim
direito neste cristão ... ou então solte o homem” e que aconselha Getúlio a
sumir. Getúlio encontra emissários da capital, enviados pelo seu chefe, para
validar as ordens de soltura, mas os informa que, se assim o fizer, eles darão
cabo dele mais tarde para encerrar o assunto, pois agora o seu chefe não quer
que seu nome apareça no incidente. Seu fiel escudeiro, Amaro, lhe dá a
segurança de ter um aliado armado para cumprir sua missão. Amaro é um homem
vivido, que tenta mostrar a Getúlio a situação, mas, em contrapartida, sabe as
consequências de ir contra a lógica do sargento e o segue como um Pancho Vila
em sua missão suicida. Temos Luzinete (Ines Maciel), paixão de Getúlio, que
quer ele largue a sua vida e lhe "faça um filho". Ele é encurralado, mas consegue
fugir com seu prisioneiro. Figuras fantasmagóricas acompanham o enlouquecido
Getúlio e seu prisioneiro, ambos sujos, feridos e fatigados, literalmente,
arrastando-se pelo caminho. Uma transição do mundo real para o imaginário.
Getúlio sabe que os reforços chegaram. Soldados estão embrenhados na mata. Ele
consegue vislumbrar suas silhuetas, mas entregar-se não é uma opção. O final
aberto, tal qual o livro, deixa para o espectador refletir e tirar suas
próprias conclusões.
Os
diálogos são uma atração à parte. Quando o padre lhe pergunta: por que
você não some? Getúlio reflete e diz “eu não posso sumir de mim”... “quem some
é os outros. A gente nunca”. Em uma conversa com os homens do ”chefe” diz: “o seguinte é o seguinte: eu vou resolver mais tarde”; “pegue a sua palavra de
honra e fique com ela”; “essa minha mão que está aqui embaixo, ela não está
coçando as minhas partes, não . Ela está por riba do Schmidt (o revolver)”, e é
um Schmidt bom da peste”. João Ubaldo aparece nos créditos iniciais como tendo
participado do roteiro com diálogos adicionais.
A
trilha sonora, a cargo de Jose Luis Penna, é perfeitamente inserida ao filme com
várias canções regionais que são bem interessantes e curiosas e se adaptam a
cada uma das passagens do filme. Um trecho, por exemplo, diz que “a vantagem
de quem está no poder é judiar de quem está por baixo; pancadas nos de baixo,
farturas pros de cima e cada um carrega sua sina”.
A fotografia, a cargo de Walter Carvalho, que tem em sua filmografia vários
filmes como Com Licença, Eu Vou à Luta (1986); Central do Brasil (1998);Abril
Despedaçado (2001); Cazuza: O Tempo Não Pára (2004); Baixio das Bestas (2006) e
Febre do Rato 2011 imprimiu cores fortes e vivas, com uma combinação excelente
de luzes e sombras, onde a noite tem um grande destaque no enredo.
Quanto ao elenco, o grande destaque é Lima Duarte. O ator coloca o filme no
bolso e tem uma interpretação poderosa e hipnótica. Muito contribuiu o fato do
ator conhecer e apreciar a obra de João Ubaldo dando ao personagem um caráter
único. Algumas pessoas poderão, em uma cena ou outra, lembrar-se do personagem
“Zeca Diabo”, o cangaceiro da série “O Bem Amado”, mas Lima Duarte não fez essa
transposição, ele deu individualidade a um personagem pouco conhecido em nosso
país, mas que ao vermos o filme, ainda hoje, parece tão familiar. Além do ator,
apenas dois atores eram profissionais: Fernando Bezerra (o prisioneiro) e
Flavio Porto (o padre), mas a atuação do restante do elenco foi tão acertada
que não conseguimos perceber tal fato.
Um
aspecto interessante é que Sargento Getúlio estava à espera de seu intérprete.
O cineasta Rui Guerra se interessou pelo projeto anos antes, mas não levou
adiante. Posteriormente, surgiu a possibilidade do cineasta Glauber Rocha fazer
o filme com o ator Othon Bastos na pele de Getúlio. Quando Lima Duarte soube
que um novo cineasta havia intencionado levar às telas o personagem, entrou em
contato com Hermano Penna (estreante na direção de longas) para uma parceria,
onde viria a trabalhar praticamente de graça, durante 45 dias , na cidade de
Poço Redondo (local da morte de Lampião). Lima Duarte, na época, havia apenas
visto uma cópia em 16mm concluída e somente cinco anos depois veria a obra em
35 mm sair das prateleiras da Embrafilme e surgir premiado no Festival de
Gramado
Sargento Getúlio é um grande filme, mas que tem que ser apreciado por quem
gosta de filmes brasileiros de qualidade, ambientado no Nordeste, com
personagens propositadamente regionais, além de ser uma ótima oportunidade de
conhecer a obra de um dos nossos mais famosos escritores nacionais.
Reportagem da TVE (RS) com depoimento de Lima
Duarte
Curiosidades:
Sargento
Getúlio foi escolhido pelo Banco do Nordeste, através do Prêmio José Lima
Rego, o melhor romance nordestino publicado nos últimos 30 anos,
recebendo um prêmio de 1 milhão na época.
A direção foi de Hermano Penna, que também acumulou as funções de produtor e roteirista (este último junto com Flávio Porto). Penna também foi roteirista do Filme Iracema – Uma Transa Amazônica (1974).
Orlando Viera que fez o papel de Amaro, trabalhava, na época das filmagens , com funcionário do DNER de Aracaju e tinha feito uma ponta no filme de Ipojuca Pontes, O Filho Pródigo.
Ganhador no Festival de Gramado, de 1983, como Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som Direto (Mario Masetti)
Prêmio Especial do Juri -Novo Cinema Latino Americano de Havana.
Prêmio
Leopardo de Bronze no festival de Locardo
No
filme há referências a Hamlet, Shakespeare e Don Quixote adaptadas a linguagem
do Sertão
O filme foi concluído em 1978, em 16mmm ao custo de 1 milhão e 200 mil e lançado somente em 1983. Após sua premiação no Festival de Gramado, o filme deslanchou e foi para a tela grande.
A revista Cinemin nº 5, de 1983, trouxe uma ótima matéria de 2 páginas a respeito do filme
Filmografia Parcial:
Lima Duarte
Lima Duarte
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