quinta-feira, 10 de setembro de 2015

TARTARUGAS PODEM VOAR / LAKPOSTHHA PARVAZ MIKONAND / TURTLES CAN FLY (2004) - IRÃ / FRANÇA / IRAQUE






O MUNDO QUE A TV NÃO TEM INTERESSE EM MOSTRAR E QUE AS PESSOAS NÃO TEM INTERESSE EM VER


Órfão curdos vivem refugiados num acampamento, situado no Curdistão, próximo à fronteira do Iraque com a Turquia, recolhendo minas que são vendidas no comércio local, às vésperas da chegada das tropas americanas ao Iraque (em 2003) e a posterior deposição do ditador Sadam Hussein.
O filme é visto pelos olhos de Satellite (Soran Ebrahim), que aguarda ansiosamente notícias da guerra, enquanto encontra o seu primeiro amor em meio a uma vida pouco digna. Satellite é o responsável por cuidar das crianças órfãs. Seu estilo é direto. Ele determina o que as crianças devem ou não fazer. Diz quando trabalhar, no que trabalhar. Mas ele é um garoto justo, apesar de muitas vezes impor suas vontades no grito (influência do ambiente ditatorial em que vive) 



O cineasta apresenta Satellite como uma criança quase entrando na adolescência, mais mental do que física. O menino tem esse apelido por instalar antenas comuns e parabólicas, sendo o mais procurado, pelos mais ávidos por notícias sobre a eminente chegada das tropas americanas. Ele entendeu de certa maneira como é o mundo: manda, faz acordo de preços, vende e funciona como tradutor americano. Aprendeu que ter um conhecimento globalizado o coloca acima dos demais. Mas Satellite não entende inglês, apenas algumas frases, palavras e expressões, mas numa terra em que ninguém praticamente compreende o idioma, qualquer coisa que invente será considerada como verdadeira. Uma realidade dessa situação fica bem visível quando os anciões da aldeia colocam-se em frente da TV e pedem que Satellite traduza as notícias do canal CNN. Aparece a figura de Bush falando sobre a guerra que se aproximava. Ele fala que Bush está falando que vai chover. Diante da incredulidade do que ali estão ele repete que o presidente americano está falando de chuva, mas que é um código e inventa uma desculpa para se desviar do assunto. Em outra situação, ele pede que uma pessoa se passe por estrangeiro, enquanto fala poucas palavras como se estivesse dialogando. Sua explicação é simples: as pessoas dão mais valor se você conhece outro idioma e muito mais se este for americano. Essa cena é reflexiva: se você não quer aprender, será governado por aqueles que querem e adaptar-se as mudanças é essencial para se viver num mundo de mudanças políticas




Satellite tem um grande culto a tudo que vem dos Estados Unidos: produtos tem mais valor, as pessoas, armas, qualquer utensílio vale mais como objeto de troca. Há uma cena em que o menino conversa no caminhão sobe o filme Titanic, mostrando até onde o sucesso americano atingiu. O que Satellite vai perceber a duras penas é que ele e seus comandados são aleijados por minas, as mesmas que eles veem como fonte de lucro. Escolhem colher as minas americanas (pelo melhor valor da mercadoria) e as revendem a míseros valores, seja através de um negociante ou num mercado para conseguirem comida e utensílios. Minas que aparentemente voltarão para as mãos dos americanos a um custo baixíssimo.  




O diretor Bahman Ghobadi utilizou pessoas do dia-a-dia daquela realidade. Aqui não temos radicais, pessoas contra o regime americano, agitadores. Temos pessoas comuns que vivem praticamente em uma tenda e um cobertor para dormirem. Usando, na maioria das vezes, as mesmas vestes. As crianças não brincam: acordam, correm atrás de trabalho e conseguem um mísero dinheiro. O dia termina, dormem e levantam cedo novamente para recolher minas ativas. E o processo se repete todos os dias. Combate ao trabalho infantil? Isso aqui não existe. Não há lugar para isso.


O diretor permeia o filme com uma critica a invasão americana na cultura: as parabólicas passam os canais de reportagem e os proibidos: sexo e dança. Todos obedecem e não assistem os que não são permitidos.  Saber palavras americanas dá status. Utensílios americanos são ouro. Filmes mostram uma vida completamente diferente do contexto em que vivem. A chegada dos soldados é considerada salvação, a ideia de um futuro melhor. Quando os soldados chegam à aldeia, distribuem panfletos, exaltam a liberdade e levam os habitantes para verem os canais proibidos (uma referência clara a imposição de uma nova cultura, atropelando a antiga). Não há um posicionamento político por parte do diretor, há uma crítica a absorção de outra cultura e a perda de uma identidade histórica.




Satellite gosta de uma jovem (que parece uma menina), refugiada, chamada Agrin (Avaz Latif) que vive com seu irmão Hengov (Hiresh Feysal Rahman), que não possui as mãos, além de uma criança pequena que cuidam. Agrin demonstra por Satellite, no mínimo curiosidade e este a vê como seu primeiro amor. Enquanto Satellite cultua os EUA, Agrin, uma menina em torno de seus 14 anos, tem outros problemas a lidar. A criança pequena que carrega é seu filho, vítima de estupro de soldados das tropas que massacram curdos na região e que mataram seus pais num ataque a sua aldeia. Enquanto Hengov faz de tudo para cuidar como pode da criança, Agrin só deseja se livrar dela. Na sua cultura uma jovem com um filho, não sendo casada, da forma como foi concebido, é uma vergonha até o fim da vida e, provavelmente, sem pretendentes. A menina entende que vê-lo é relembrar diariamente seu tormento, algo que não lhe sai da cabeça e que a leva a desejar até mesmo o suicídio. Podemos entender que o diretor fez um paralelo à chegada americana: agrada a Satellite, afinal é um dos poucos que compreendem o idioma, logo sua interação nesse mundo lhe será benéfica, além do fim da opressão ao seu povo, enquanto para Agrin é um mundo onde não a aceitarão pela desonra sofrida.



O temor de um ataque químico mostra o que essas pessoas já passaram. Em determinado momento de suas vidas são oferecidas máscaras contra gás, para um membro de cada família, orientando que a máscara é para determinado gás identificável através da cor.  


Apesar de certa crítica aos EUA, podemos perceber que as mazelas da guerra não só causadas por um lado. Aqueles que fomentam a guerra e impõe suas vontades, colocam seus peões no tabuleiro. Quando a guerra começa, as peças menos importantes a serem sacrificadas são estes peões. O Rei sempre cai por último.


Tartarugas Podem Voar não é um primor de montagem, ritmo e outras especialidades do cinema convencional. Ghobadi resolveu centrar na discussão do papel da guerra e suas vítimas que são as verdadeiras afetadas. Seu relato é mais cru e sua visão do jogo de poder é muito bem elaborada, ainda que alguns reclamem de que o filme tenha certa morosidade. O elenco é amador, colhido entre os habitantes, mas a impressão passada é de que são atores. É a guerra que você não vê na TV. Nada de explosões, através lentes com visão noturna, exibidas em noticiários. Um trunfo que torna o filme ainda mais merecedor de aplausos.



Mas não é um filme para todos os públicos. É direcionado aqueles que gostam de ter uma visão do mundo do ponto de vista de aonde as coisas acontecem. A ideia é mostrar que aquelas pessoas são seres humanos como nós, vivendo em condições absurdas, enquanto o resto do mundo vira seus olhos para a vida de culto a personalidades (algumas delas completamente fúteis), programas vazios, viagens a ótimos lugares e discussões em site de relacionamentos. O mundo tem essas duas faces, não há como negar. Enquanto uns riem, outros choram. Aqui é sobre os que choram, mas não são ouvidos.  Um mundo que a mídia prefere não mostrar. A realidade é feia e suja e ninguém quer ficar chateado ao ligar a TV ao acordar ou ao dormir. A sensação de inércia e impotência é algo que o espectador rejeita. Trocar de canal e sorrir, esquecendo de um mundo que não faz parte da realidade, é o caminho mais prático e, para muitos, o mais certo.




Por isso filmes como as Tartarugas Podem Voar chocam. Muitos críticos dizem que é um soco no estômago. Mas o soco no estômago é para quem vive em outro mundo e, possivelmente, o caso de muitos críticos. Não há nada que uma pessoa que esteja ciente do que acontece no mundo real, não tenha visto ou lido. Para aqueles que já leem o mundo da forma como ele é, verão um filme que conta uma realidade cruel como tantas outras, não evitando aquela sensação de indignação, mas sabendo que em muitos lugares do planeta o tema deste filme foi, é, ou será, um relato crível de uma realidade. Multidão de crianças órfãs, fome, miséria, falta de educação (porque a situação não permite ou porque não é interessante). Faltam médicos, remédios, além da imposição de crenças e/ou valores (seja pelos atuais representantes que os mantém no cabresto ou pelos que surgirão). Tudo isso pode ser observado neste filme, mas depende muito de como os seus olhos estão abertos em relação ao mundo que você vive: o real ou mundo de “Matrix” ? 



O título é uma alusão as minas terrestres que tem um formato de carapaça igual as das tartarugas, que ao serem ativadas, explodem voando aos pedaços.




Conforme o Wikipédia: “Curdistão é uma região com cerca de 500.000 km² distribuídos em sua maior parte na Turquia e o restante no Iraque, Irão, Síria, Armênia e Azerbeijão. Seu nome, que vem do persa e significa "terra dos curdos", foi cunhado em 1150 pelo sultão Seljúcida Sanjar para designar uma parte do Irã ocidental”


Trailer:





Curiosidades:
O diretor Bahman Ghobadi dirigiu também "Tempo de Embebedar Cavalos

Principais Premiações:
Sundance Selection, 2005
San Sebastián International Film Festival, 2004 - Golden Seashell, Best Film
Chicago International Film Festival, 2004 -  Special Jury Award
Berlin International Film Festival, 2005 -  Peace Film Award
Rotterdam International Film Festival, 2005 -  Audience Award

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