domingo, 14 de fevereiro de 2016

O NOVÍSSIMO TESTAMENTO / (2015) - BÉLGICA / FRANÇA / LUXEMBURGO




OS ESPECTADORES NÃO FICAM INDIFERENTES 

(o texto contém spoilers)

O Novíssimo Testamento é, antes de tudo, um exercício de criatividade. Segundo a concepção dos autores, “Deus” (Benoît Poelvoorde) mora em Bruxelas. É irascível, bêbado, rabugento e vive em seu escritório digitando em um computador velho (sistema DOS) as “regras de Murphy” para a humanidade como: “a fila ao lado sempre anda mais rápido” e “o pão cai sempre com a parte da manteiga para baixo”, além de provocar desastres aéreos e ferroviários como divertimento.  Autoritário, possui uma esposa completamente submissa. Em sua tevê só passa esportes e vive em conflito com sua filha pré-adolescente, EA (Pili Groyn de “Dois Dias, Uma Noite” de 2014), que sente a falta de seu irmão Jesus (chamado de J.C) que, por desavenças, rebelou-se e afastou-se  do lar. 



Certo dia, EA resolve enfrentar seu pai e mexer em seu computador de onde saem todas as ações (boas e ruins) que governam a humanidade. Ela coloca uma senha de bloqueio no computador, não sem antes mandar para toda a humanidade a quantidade de anos, meses e dias que ainda resta para cada ser humano. Ou seja: a data da morte de cada um. 


Com a ajuda de Jesus (David Murgia),  EA foge de seu lar (de uma forma muito criativa e divertida) e resolve recrutar 6 apóstolos (buscados intuitivamente nos arquivos do pai) e, assim, criar o "Novíssimo Testamento". EA irá em busca de seus seis personagens, acompanhada de um simpático sem teto, Victor (Marco Lorenzini), semi analfabeto,  com um caderno e lápis à escrever a vida dos “novos apóstolos” em seu novo evangelho.


O Novíssimo Testamento não é um filme para qualquer tipo de público. Seu humor negro, sarcástico, com uma cobertura de non sense e repleto de metáforas, o tornam uma produção que pode agradar ou desagradar na mesma proporção. A única sensação que não causa no espectador é indiferença. 


EA escolhe seis indivíduos para sua missão e seus novos apóstolos estão longe de serem pessoas normais:

Temos uma linda jovem, Aurélie (Laura Verlinden),  que é infeliz em sua vida e relacionamentos (na verdade todos eles são). É objeto de paixão de vários homens, mas não se consegue ter uma vida amorosa. 


 









Marc (Serge Larivière), um tarado (sim, esse é o modo como é relatado no filme) que passa sua vida frequentando lugares onde dançarinas fazem Strip-tease em troca de dinheiro. 

 





 

O pretenso assassino, François (François Damiens), que partilha uma vida entediante com a mulher e filho e que sempre desejou matar pessoas e vê, na nova situação, uma forma de testar se realmente morrerá quem estiver na sua hora final. 
 
 




 
  

Jean-Claude (Didier De Neck), um executivo que trabalhou a vida inteira, subiu de cargo, mas em nada aproveitou a sua vida. Diante da revelação do pouco tempo que lhe resta resolve esperar a morte chegar por não ter objetivos concretos em sua vida.
 
 





 

Martine, uma mulher rica,  (Catherine Deneuve, o nome mais famoso do elenco), que vive uma vida enfadonha ao lado de uma marido que não ama e com uma vida que não vê sentido.









E, finalmente, um garoto de 10 anos, Willy (Romain Gelin), que descobre que tem poucas semanas de vida e resolve que quer se vestir de menina. 










“Deus” resolve ir ao encontro de EA para levá-la de volta pra o lar e puni-la por seu audacioso plano. Só que as coisas não são exatamente como “ele” esperava. Enquanto sua filha demonstra ter “poderes divinos”, seu pai se afastou tanto da humanidade que parece ter perdido a prática e não sabe cuidar nem de si próprio no mundo dos homens. Ele descobre que conviver com seres humanos não é algo muito fácil. Logo em sua chegada, de bermuda, camisa e meias é atacado com spray de pimenta por uma assustada senhora. Em seguida dá de cara com um grupo xenofóbico que o espanca por nada (uma crítica, provavelmente, a esses grupos em Bruxelas e na Europa em geral). Descobrirá que não é imune as suas “Leis de Murphy” (em momentos hilários) e consegue até levar a ira um bondoso padre (Gaspard Pauwel), ao contar sobre a infância deste.


O roteiro, feito a quatro mãos, por Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael, que por vezes soa altamente blasfemo, não pode ser encarado como uma concepção de Deus como conhecemos. O diretor colocou sua visão de um “Deus” que abandonou a humanidade, que nunca teve muito carinho por ela e que deixa as pessoas sofrerem por puro sadismo. O fato de ter o computador “travado” o coloca em pânico, ao acreditar que com isso as pessoas passarão a controlar seus próprios destinos. Claro que esta descrição não condiz com o Deus bíblico, um Deus de amor para com os seus filhos. Esse é um ponto que afastará muitas pessoas: o filme passa uma impressão de ser ateísta, herege, mas EA prova o contrário. Ela é o elo com a humanidade. De suas ações surge bondade, compreensão, amor ao próximo. É nela  que o diretor foca sua dialética. EA vê em cada pessoa, um ser único, frágil, carente de atenção, compreensão e de amor ao próximo. Ela vê o bem em cada indivíduo. Cada um dos "apóstolos" trouxe para o seu presente (tirando o garoto) traumas ou acontecimentos que moldaram sua personalidade. Algo bem freudiano.


O diretor Jaco Van Dormael (Sr Ninguém) aproveita seus personagens para deixar algumas reflexões:

- Jean-Claude , no parque, pergunta a EA porque o pássaro não voa para longe e ela lhe responde que o pássaro lhe questiona o mesmo a seu respeito. O simbolismo daqueles que estão presos em amarras invisíveis.

- “Deus” exacerba sua insatisfação com Jesus à um padre, que teria se sacrificado por uma humanidade que se tornou o que é hoje.

São várias as mensagens e cabe ao espectador fazer suas próprias correlações.

Não podemos deixar de citar o hilário jovem Kevin (Gaspard Pauwels) que descobre que ainda viverá por mais 62 anos e começa a testar se realmente é verdade, se atirando de pontes, prédios e aviões sem paraquedas. O diretor perdeu aqui uma grande chance de mandar uma mensagem, em forma de consequências, para os atos insanos do rapaz. 



Conforme o diretor, em entrevista,  o projeto inicial seria fazer um drama em uma Bruxelas que frequentemente é chuvosa (provavelmente uma analogia à cena de "Deus" usando um regador sobre uma maquete), cinza e onde ninguém é plenamente feliz. Quanto a questão das mulheres, teria dito que no Novo Testamento não há muitas menções sobre mulheres, logo inseri-las no contexto pareceu uma ideia interessante. O diretor ainda sustenta que o filme aborda o conceito de poder e não de religião. E continua: "A ideia de que se você não fizer algo de uma forma vai resultar em uma punição é muito abusiva" (Fonte: O Globo 28 jan 2016). 
O jornal The Guardian classificou o filme  como “uma visão otimista onde as pessoas buscam ajudar umas às outras carinhosamente”. 


A trilha sonora é praticamente toda erudita, própria de filmes europeus. EA é capaz de escutar a música interior de cada ser e surgem composições dos grandes mestres como:  Haendel, Schubert, Henry Purcell, Charles Trenet, Camille Saint-Saëns entre outros ainda que tocadas de uma forma bem breve, mas de muito bom gosto e adequada ao estilo de linguagem utilizado pelo diretor.

O Novíssimo Testamento tem, em seu elenco extremamente afinado, o grande fator diferencial do filme. Claro que a direção de Jaco Van Dormael foi determinante, pois com todos os elementos apresentados acima, colocando um “Deus“ que parece ser isento de misericórdia, poderia ter dado muito errado e gerado calorosos debates. O filme representa a Bélgica no quesito de Melhor Filme Estrangeiro e vem laureado de premiações em festivais e críticas favoráveis, além de ter sido o terceiro título mais visto no país, alcançando 300 mil espectadores. 

 


Não dá para afirmar que não conquistará o prêmio, mas será uma surpresa por vários motivos e os principais seriam a abordagem com que descreve sua visão acerca de Deus e o final pouco inspirado. A produção é descrita como uma comédia, mas transita entre o drama existencial. Por ser uma produção europeia, de arte, voltada a reflexão, muitos poderão torcer o nariz, mas se você é uma pessoa que amadureceu o suficiente para poder assistir um filme que mexe com dogmas religiosos, sem ser influenciado em suas crenças, "O Novíssimo Testamento" pode ser um bom filme de reflexão sobre a nossa sociedade atual e o indivíduos inseridos nelas. 


No final parece que a principal mensagem do filme é que as pessoas devem aproveitar mais suas vidas, amar mais ao próximo, ter objetivos, realizar,  aprender e não ficarem estáticos em suas vidas esperando a morte chegar. 



Trailer (legendado em inglês)




Curiosidades:

A história do menino que queria ser menina veio de um artigo de jornal lido pelo diretor.

O diretor relatou ao site deadline que, por trás da vestimenta do Gorila, havia uma pessoa que falava espanhol. Como Van Dormael não domina o idioma, Deneuve (que fala o idioma) foi o elo entre o diretor e o “gorila”.

Um Homem Com Duas Vidas (1991) - Toto le Héros - foi o cartão de visitas do diretor ganhando 2 prêmios no festival de Cannes.

O filme foi escrito por Thomas Gunzig (que faz um participação relâmpago como Ciclope) e Jaco Van Dormael (que faz o motorista que tem 1 segundo de vida e seu carro colide contra um caminhão).


Premiações:

Austin Fantastic Fest 2015
Biografilm Festival 2015
European Film Awards 2015
Norwegian International Film Festival 2015
Sitges - Catalonian International Film Festival 2015


Trilha Sonora:

♦ Le Rappel des Oiseaux - Jean-Philippe Rameau

♦ Tombe la neige - Salvatore Adamo

♦ Sing Song Sally - An Pierlé - do album Helium Sunset (2002)

♦ Aquarium de "Le carnaval des animaux" - Camille Saint-Saëns

♦ La Mer - Charles Trenet and Albert Lasry

♦ O Solitude! - Henry Purcell

♦ Der Tod und das Mädchen (Death and the Maiden) - Franz Schubert

♦ Lascia ch'io pianga - Handel 



Filmografia Parcial:
Catherine Deneuve







A Bela da Tarde (1967);  Tristana, Uma Paixão Mórbida (1970); Crime e Paixão (1975); O Último Metrô (1980); Fome de Viver (1983); Tomara Que Seja Mulher (1986); Indochina (1992); Dançando no Escuro (2000); A Vingança do Mosqueteiro (2001); Reis e Rainha (2004); Perigosa Obsessão (2007); Diário Perdido (2009); Astérix e Obélix: A Serviço de sua Majestad (2012); O Homem Que Elas Amavam Demais (2014); O Novíssimo Testamento (2015);  O Ignorante (2016); O Reencontro (2017); A Última Loucura de Claire Darling (2018); Adeus à Noite (2019); Feliz Aniversário (2019); Enquanto Vivo (2021); Femminile Singolare (2022) 


Benoît Poelvoorde







Aconteceu Perto da sua Casa (1992); Peso Morto (2002); Podium (2004); Problemas de um Dorminhoco (2004); Coco Antes de Chanel (2009); Mamute (2010); Românticos Anônimos (2010); O Novíssimo Testamento (2015).


Pili Groyne







Dois Dias, Uma Noite (2014); Alléluia (2014); O Novíssimo Testamento (2015).


Laura Verlinden 






Ben X: A Fase Final (2007);  O Tratamento (2014); O Novíssimo Testamento (2015); Vanitas (2015); Em Busca da Carta Proibida (2017); Happy End (2017); Un Monde (2021)



François Damiens







Agente 117: Uma Aventura no Cairo (2006); Taxi 4 (2007); JCVD (2008); O Pequeno Nicolau (2009); Como Arrasar um Coração (2010);  A Delicadeza do Amor (2011); Tango Livre (2012); A Família Bélier (2014); O Novíssimo Testamento (2015).


Yolande Moreau







Germinal (1993); O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001); O Corte (2005); Incognito (2009); Mamute (2010); Gainsbourg - O Homem que Amava as Mulheres (2010); O Novíssimo Testamento (2015).


Serge Larivière







O Corte (2005); O Silêncio de Lorna (2008); Sr. Ninguém (2009); Cosmodrama (2015); O Novíssimo Testamento (2015).


Marco Lorenzini







A Vingança do Mosqueteiro (2001); Testamento (2015); Irmãs Gêmeas (2002); O Novíssimo Testamento (2015).

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