Elisabet Vogler (Liv Ullmann) é uma atriz famosa que, durante uma récita da peça clássica de Electra, sofre um bloqueio psicológico em cena, no dia seguinte é encontrada em seu quarto imóvel e voluntariamente muda. É submetida a uma série de exames, que atestam possuir bom estado físico e mental, o que não justifica a sua mudez, sendo enviada, pela chefe da clínica psiquiátrica (Margaretha Krook), para descansar em uma casa de veraneio, à beira-mar, sob os cuidados de uma enfermeira chamada Alma (Bibi Andersson). Alma resolve elaborar uma estratégia: passa a recorrer à palavra por si e por Elisabeth. Surge uma grande amizade, a ponto de Alma revelar confidencias e intimidades. Vivendo isoladas, essas duas mulheres chegam a certa altura a dar a impressão de serem uma só pessoa, se estabelecendo de forma preocupante um gradual processo de identificação, relacionamento e transferência psicológica.
Dirigido por Ingmar Bergman (1918-2007), um dos maiores expoentes da cinematografia mundial, Persona foi o 27º filme do diretor. No Brasil, deram à obra o infame título “Quando Duas Mulheres Pecam”, um título a fim de aguçar erroneamente a curiosidade para uma visão proibida, aquele velho embuste de se fabricar títulos como apelo de bilheteria, dando ênfase ao erotismo quando este é apenas um elemento incidental da obra, mudando a percepção de quem escolhe o filme para assistir. Praticamente uma defraudação da obra, pois pressupõe uma relação íntima entre duas mulheres, o que não ocorre. O título original se manteve na maioria dos países e se mostra mais adequado à proposta do filme.
"Persona" não é fácil em termos de assimilação (irei me referir ao filme assim e, inclusive, o colocarei como primeiro nome no título da postagem). A sinopse cabe em um parágrafo, mas a verdadeira medida só se explica no fluir das imagens. Para um bom entendimento, não viso aqui fazer uma análise do ponto de vista da psicanálise (deixo para os profissionais da área). Persona deriva de uma palavra latina que quer dizer máscara; máscara do teatro antigo que designava as feições do personagem que o ator representava (ou quem a máscara ocultava). Também, aqui, poderia ser entendido como uma máscara de nossos sentimentos e pecados, aqueles nunca confessados e quase inconfessáveis. Persona também é um personagem da terminologia Jungiana (Carl Jung 1875-1961). Persona, enfim, é um filme sobre o cinema e sobre a alma humana.
NOS PRÓXIMOS PARÁGRAFOS, O TEXTO CONTERÁ INVEITÁVEIS SPOILERS
O filme se inicia no escuro. Lentamente surgem duas luzes: são os carvões de um projetor de cinema (os projetores a carvão não proporcionam uma luminosidade adequada). Então
começa a projeção. Um projetor que nasce de outro projetor (um filme dentro do
filme?). Imagens quase subliminares de frames por segundo (ou seja, "num piscar
de olhos") surgem em tela (inclusive de dois órgãos genitais). Desenho animado,
comédia muda ... aranhas, o olho de um cordeiro morto... cenas que lembram um cineasta que
Bergman admirava: o cineasta Luis Buñuel (que se utilizava do recurso de dar um choque inicial para
despertar a atenção do espectador). Vemos um menino procurando cobrir-se (calor
= amor / afeto) sem consegui-lo; passando sua mão nas imagens de Elisabeth e Alma
sem conseguir tocá-las (ambas negaram afeto aos filhos – rejeitaram o filho -
cada qual em sua tragédia, como veremos à frente). Imagens também de um Bonzo se incendiando na rua e uma crucificação
(a mão com o prego) poderiam ser entendidos como o tema do sacrifício da qual Elisabet
se mostrará incapaz.
Lentamente, veremos uma estranha transferência de personalidades (fusão, transfusão de personalidade ou consciência) à medida que as duas mulheres se tornam íntimas. Elisabet deixará de ser doente e Alma (um nome sugestivo e não aleatório) passará a ser a vítima. Essa transferência será a estória de Persona. A dualidade entre o artístico e a realidade é a chave de persona. Alma se tornará um avatar de Elisabet ao tentar acessar o âmago da paciente, mas aos poucos começará a ter sua personalidade absorvida tornando-se a máscara (persona) sob a qual a atriz esconderá suas emoções. Passiva ou ativamente Elisabet se reflete em Alma. Quando Alma adormece, parece-lhe que Elisabet entra em seu quarto e há uma mistura de ternura com sensualidade (muitos consideram um sonho, consideram que a cena simboliza que Alma acreditou ter conseguido o afeto que esperava de Elisabeth ou que Bergman quis dar este conceito à cena). Ambas repartem a solidão e o sonho. Também realidade e sonho combinam-se. Há uma cena em que Elisabeth parece beijar o pescoço de Ana, mais à frente veremos ela beijar seu pulso. Há uma sutil analogia ao vampirismo: Elisabet suga a energia de Alma como um vampiro suga o sangue de suas vítimas.
O filme alcança o clímax, talvez, quando Alma, que sempre sentiu falta de uma irmã (possui sete irmãos) encontra em Elisabet (uma espécie de “heroína calada”), tardiamente, alguém que a ouça (por isso ela começa a falar por si e por ela). Ela conta o seu mais trágico segredo e reage a uma carta que Elisabeth, de proposito (com intenção de feri-la), deixa ao seu alcance (ela não sela a carta) sobre confidências feitas. O tom de ironia leva Alma a um estado de histerismo na qual se revela outra pessoa. O “não!”, mais grito do que palavra, marca um entreato. A mudez de Elisabet talvez nos revele que cada palavra, cada gesto possa ser uma mentira. Persona seria mais um papel que ela representa. Já Alma, parece uma pessoa sem problemas, mas percebemos que ela também tem um grande problema: o da insignificância, o de se considerar normal demais. Ela sofre de uma falta de percepção da individualidade. Percebemos a troca de personalidade quando o marido de Elisabet chega: é Alma quem o recebe. É a duplicidade, uma só pessoa em duas. Por isso a imagem de ambas, em determinado ponto, se funde em uma. É uma metáfora para o desdobramento da personalidade. A certa semelhança física entre as duas atrizes não foi por acaso.
Em um momento mais dramático, o rolo de filme rompe do projetor, exatamente como a estória. Elisabeth volta ao palco e Alma toma o ônibus para voltar ao seu cotidiano. Os carvões do projetor se afastam, a tela escurece, o filme termina. No começo e no fim existirá a mesma imagem, se apresentando exatamente ao inverso do que foi mostrada no começo, idêntica, mais invertida, projetada como um reflexo no espelho. Outro momento que Bergman nos traz algo de diferente é ao repetir uma sequência idêntica de diálogos a que foi anteriormente mostrada, parecendo um erro no filme. Uma ênfase do que levou Elisabet a rejeitar o filho desde a sua concepção.
FIM DOS SPOILERS
Quanto ao elenco, foi o primeiro trabalho de Ullmann para Bergman com a qual teve um romance e uma filha. Fez dez filmes com o diretor. Bibi Anderson fez 12 filmes com o cineasta. Nas cinematografias de ambas, esse filme aparece como referência de seus trabalhos.
Persona é como uma sinfonia, é mais para ser sentida e apreciada do que interpretada. Não há como transmitir todo o seu sentido em alguns parágrafos. É uma experiência visual e uma experiência subjetiva. Um quebra-cabeças entre o autêntico e o falso, entre o bem e o mal, entre o real e o imaginário. O diretor criou um insinuante jogo de facetas e talvez queira nos dizer que Persona seja, no final das contas, as máscaras que todos usam. O famoso ditado “Nós representamos duas comédias, uma perante os outros e outra perante nós mesmos” poderia ser adequado. Persona para uns é uma sessão de psicanálise, outros o considerarão um amontoado de símbolos aleatórios, lançados à tela ao acaso. Persona é sobre cinema, é sobre o âmago humano.
Trailer:
Curiosidades:
Segundo ele mesmo, Ingmar Bergman se apaixonou por Liv Ullmann durante a produção deste filme.
Este filme é considerado um filme pictórico radical. Tanto Ingmar Bergman quanto seu diretor de fotografia Sven Nykvist acharam que os planos intermediários eram chatos; Portanto, o filme consiste em alguns planos amplos, planos intermediários ocasionais e muitos close-ups longos e intensos.
Na primavera de 1965, Ingmar Bergman foi internado no Hospital Sophia, em Estocolmo, por pneumonia. Enquanto estava hospitalizado, criou o roteiro básico deste filme. Inspirado na peça de um ato "The Stronger" de August Strindberg, uma existência que consistia em pessoas mortas, paredes de tijolos e algumas árvores sombrias do parque; e concebida como uma sonata para dois instrumentos.
O garoto no necrotério está lendo "Um Herói do Nosso Tempo". Um romance russo de 1839.
A escritora Susan Sontag escreveu que considerava Persona o melhor filme já feito.
Foi escolhido pela revista Premiere como um dos "100 Filmes que Abalaram o Mundo" na edição de outubro de 1998. A lista classificou os "filmes mais ousados já feitos".
No site oficial de Ingmar Bergman, o verbete deste filme afirma que, de todos os filmes de Bergman, Morangos Silvestres (1957) é o mais imitado, O Sétimo Selo (1957) é o mais parodiado e este filme é o que é mais frequentemente discutido e analisado.
Ingmar Bergman comentou que fazer este filme literalmente salvou sua vida. Ele também disse que foi o primeiro filme que fez em que não se importou se o resultado seria um sucesso comercial ou não.
A montadora do filme Ulla Ryghe, que trabalhou em todos os filmes de Ingmar Bergman entre Através de um Espelho (1961) e Vergonha (1968), falou sobre a cena em que, durante um momento particularmente intenso entre os dois personagens principais, o filme parece queimar no projetor, que essa ilusão foi produzida de forma tão realista que criou dificuldades nas primeiras exibições, pois os projecionistas presumiram que o próprio celulóide estava pegando fogo e paravam o filme. Para evitar isso, uma etiqueta vermelha especial teve que ser afixada nas latas dos filmes para alertar os projecionistas sobre o fato de que, embora o filme pareça estar queimando, na verdade não está.
A versão americana, lançada pela United Artists, omite um breve close da genitália masculina no pré-crédito do filme.
A vida de Elisabet é, de certo modo, a da personagem Electra (de Eurípedes) que ela encena, a tragédia da vingança e do ódio
Cartazes:
Filmografias Parciais:
Liv Ullmann:
Paraíso do Pecado
(1959), Curto é o Verão (1962), Quando Duas Mulheres Pecam (1966); A
Hora do Lobo (1968); Vergonha (1968); A Paixão de Ana (1969); Visitantes
na Noite (1970), O Visitante Noturno (1971), Os Emigrantes (1971), O
Preço do Triunfo (1972), Joana, a Mulher que Foi Papa (1972), Gritos
e Sussurros (1972); Horizonte Perdido (1973); 40 Quilates (1973), Cenas de
um Casamento (1974), A Abdicação de uma Rainha (1974), A Flauta
Mágica (1975)Hannah, A Esposa Comprada (1974); Face a Face (1976); O Ovo da
Serpente (1977); Uma Ponte Longe Demais
(1977), Sonata de Outono (1978); Amor em Jogo (1979), Prisioneiro
Sem Nome (1983), Pato Selvagem (1983), Fora de Controle (1984), Virando
Adulto (1984), Tomara Que Seja Mulher (1986), Gaby - Uma História
Verdadeira (1987); O Jardim das Rosas (1989), Ponto de Mutação
(1990); Sarabanda (2003); Duas Vidas (2012).
Bibi Andersson (1935–2019)
Senhorita Júlia
(1951); Sorrisos de uma Noite de Amor (1955); O Sétimo Selo (1957); Morangos Silvestres (1957); No Limiar da Vida (1958); O Rosto (1958);
O Olho do Diabo (1960); A Praça dos Homens Sem Alma (1961); A Amante Sueca
(1962); Curto é o Verão (1962); Para Não Falar de Todas Essas Mulheres (1964);
Duelo em Diablo Canyon (1966); Quando Duas Mulheres Pecam (1966); Você é a
Favor ou Contra o Divórcio? (1966); Palmeiras Negras (1968); O Sádico de Alma
Negra (1969); A Paixão de Ana (1969); Entre Duas Paixões (1970); A Hora do Amor
(1971); Cenas de um Casamento Sueco (1974); Chove Sobre Santiago (1975); O
Inimigo do Povo (1978); Aeroporto 79: O Concorde (1979); Entre a Vida e a Morte
(1983); Pobre Mariposa (1986); A Festa de Babette (1987); Anna (2000); Arn: O
Cavaleiro Templário (2007); Arn: Riket vid vägens slut (2008); The Frost
(2009)
Ingmar Bergman (1918-2007 - diretor):
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