Século XVII. Uma trupe de oito
artistas mambembes vaga pela França enfrentando a fome e o frio para
proporcionar momentos de alegria àqueles que vivem de forma miserável nos
vilarejos, em troca de alguma comida ou trocados. Acampados com um homem ferido,
encontram um agente sanitário (Giuseppe Cederna) que se preocupa se o doente
está acometido de peste bubônica ou alguma doença infectocontagiosa. Um dos
artistas, Pulcinella (Massimo Troisi), lhe informa que o ferimento fora causado
por uma lâmina, em um duelo, e lhe contará como tudo aconteceu.
A caminho de Paris, o grupo teve sua carroça presa na lama durante uma tempestade e buscou refúgio em um castelo pertencente a um nobre financeiramente arruinado, último descendente de sua dinastia, o Barão de Sigognac (Vincent Perez). Seu servo (Ciccio Ingrassia) pediu que permitissem que o jovem os acompanhassem, pois como o pai deste esteve na guerra com o rei Luís XIII e o salvara, como forma de reparar a dívida, iria recompensá-lo, reintroduzindo-o na corte francesa. A trupe de teatro, liderada por Tyrant (Toni Ucci) e Lady Leonarde (Lauretta Masiero) acolheu Sigognac. Sem que o grupo soubesse, Pulcinella recebeu 100 moedas de ouro como forma de garantir que o jovem barão pudesse chegar incólume até o seu destino. A caminho de Paris, Sigognac se apaixonou pela bela Isabella (Emmanuelle Béart), a ingênua da trupe, e por Serafina (Ornella Muti), uma sedutora mulher. Todos passaram a sonhar com uma vida melhor ao levarem Sigognac até o rei, mas a viagem lhes reservaria inúmeras surpresas.
Quinta versão levada às telas do livro do francês Theophile Gautier (1811-1872), “Le Capitaine Fracasse”. O filme (1990) chegou às telas brasileiras somente dois anos depois, com um título nacional diferente: “A Viagem do Capitão Tornado”. Esse foi o típico caso na qual o título brasileiro ficou mais adequado do que o original: Se colocassem "A Viagem do Capitão Fracassa", o duplo sentido da palavra “fracassa” nessa frase, para nossa língua, geraria uma ambiguidade, uma ideia de conclusão do filme já no título. Já se fosse "A viagem do Capitão Fracasso", não harmonizaria foneticamente quando se quer atrair um público. Logo, "A Viagem do Capitão Tornado" retirou muitos dos problemas que "fracassa" geraria, até porque a ideia central de "fracassa" foi o nome que Sigognac deu ao seu personagem de apresentações, ainda que ... Para explicarmos o sucesso do filme no Brasil, temos que voltar ao ano de 1992, uma época de forte crise econômica, com muitas salas em menor público e com os filmes de arte se mantendo aos soluços. Finais de semana com um público razoável, durante a semana com salas, às vezes, tendo cinco pessoas por sessão. A insistência do exibidor em não o retirar logo na primeira ou segunda semana, em prol de rentosos sucessos comerciais, permitiu à “Capitão Tornado” ter algum sucesso frente a rotatividade reinante. E se crítica já havia se rendido às qualidades do filme, agora era o público que na base do boca-a-boca promovia a produção. Em 1993, a Globo Vídeo já o disponibilizava nas locadoras e, nesse mesmo ano, houve ainda uma peça de teatro, apresentada no Rio de Janeiro, com nome de “Capitão Tornado”, cuja sinopse dos jornais dizia ser baseado no filme. A direção coube a André Paz Leme com Afonso Celso e Carla Andréa liderando o elenco. A partir de 1994, a Rede Bandeirantes passou a apresentar a obra em sua grade de programações.
Ettore Scola (1931-2016), um dos maiores expoentes do cinema italiano, nos transportou para um território incerto entre teatro e cinema no interior da França do século 17. A inspiração, além do livro (que não segue uma adaptação fiel), veio também das representações populares chamadas de “Commedia dell arte” predominante nos séculos 16 e 17. Scola (“O Baile”, “Casanova e a Revolução”, “Feios Sujos e Malvados”) levou quase seis anos para tirar o filme do papel. Sua decisão de rodar totalmente em estúdios (na Cinecittá italiana) foi algo bem ambicioso, custoso e complicado: a direção de arte criou castelos e florestas; foram plantadas 300 arvores; colocadas rochas verdadeiras e até nuvens foram reproduzidas. E nenhum raio de sol verdadeiro, sem esquecermos o figurino detalhadíssimo, a esplendida fotografia e uma escolha precisa de cada ator / atriz para cada personagem. Scola, em entrevista alegou ter gasto muito dinheiro para levar o filme às telas.
Mas, afinal, do que se trata esse grande momento da obra de Ettore Scola? É uma grande homenagem ao teatro, um filme teatral na estética e no conteúdo, sobre atores, e um exame da natureza humana. Um conto de fadas que começa com um palco, com suas cortinas fechadas, ocupando toda a tela. Essa tela nos levará para dentro da estória. Scola embaralhou arte (ficcional) e realidade (o real) dando aquela sensação de termos que diferenciar o que é genuíno e o que é sonho. O diretor revelou que, para falar de gente de teatro, uma atmosfera irreal seria a mais adequada. Um teatro genialmente filmado. Um amalgama de teatro e cinema com começo, meio e fim; com o fim retornado ao começo (como um ritornello) quando vemos as mesmas cortinas do início, no final, se fechando (a um mundo mais belo e generoso). Scola nos mostrou em vários momentos, o encantamento do uso de metáforas às palavras cruas e secas: "alegria do forno coberta de flor de leite" (pão com manteiga). Metáforas que ganham contornos mais explícitos no filme “O Carteiro e o Poeta”. E nesse amor da trupe pela arte de representar, cada um d trupe carrega a máscara de seu personagem por toda a vida. Não é disso que “Persona” de Bergman nos fala? das máscaras por trás dos rostos? O final então nos traz nada mais que uma ambiguidade sobre o destino final desta trupe em sua chegada à Paris e na esperada audiência com o rei. Estamos diante de uma peça citando o que realmente ocorreu? Um recurso teatral para explicá-lo ou um esclarecimento dos acontecimentos por meio de uma peça? A mistura do real e imaginário de uma forma esplêndida e inspiradora. Essa é a sutileza que o roteiro nos proporciona.
O carisma individual dos atores fez toda diferença para com o filme. O suíço Vincent Perez (A Rainha Margot) é o fio condutor da narrativa. Sua transformação de um jovem inseguro, com os olhos arregalados e trêmulos, em um jovem impulsivo e de ar confiante nos mostra a maturidade do personagem. Sua permanência com o grupo significa que ele dscobriu ter uma alma de artista, descobriu ali sua identidade. A francesa Emmanuelle Béart, com o ar doce e angelical de Isabella, trará problemas para o jovem, além de rivalizar, em determinado momento, com Serafina uma mulher carente de afeto, insegura e à procura do amor verdadeiro. A italiana Ornela Muti (Flash Gordon e Missão impossível) transborda sensualidade nas telas com sua personagem Serafina, que recebeu um ar de modernidade. Quanto a Massimo Troisi (ator, diretor e roteirista), há uma certa fragilidade que permeia o seu personagem, assim como em “O Carteiro e o Poeta” (seu último filme e o mais comercialmente conhecido). Seu Pulcinella (um personagem criado para o filme) é uma espécie de ajudante bufão da trupe e um polichinelo (é um antigo personagem da "commedia"- Polichinelo em italiano se chama Pulcinella). Se torna servo de Sigognac por um incentivo lucrativo, mas ele não é escravo. Jean-François Perrier interpretou Matamore (na versão brasileira, Matamoro) cujo destino forçará Sigognac a entrar nesse metier e criar o Capitão Fracassa. E seria Ettore Scola, de forma indireta, o sanitarista (Giuseppe Cederna) que encontra a trupe e ouve de Pulcinella suas estórias? Remo Girone interpretou o duque de Vallombrosa, que se encantará por Isabella e colherá ódio de Sigognac. Claudio Amendola interpretou o bandoleiro atrapalhado Agostino, que tenta atacar a trupe com sua ajudante mirim Chiquita. Seu destino se confunde entre o real e o sonho (ou uma forma “metafórica” que Scola encontrou para a narrativa). Um destino cruel frente a sua vida de usurpações de bens alheios, após sua redenção (apenas vivenciada pela trupe). No final, todos esses personagens possuem os mesmos traços de comicidade e amargura em cena. Todos são carentes de algo.
Produção franco-italiana, “A Viagem do Capitão Tornado” nos mostra uma linda narrativa, de uma forma lírica, simpática e sensível; um tipo de teatro que não existe mais: atuar por amor para plateias que pouco tem a oferecer. E se não mais se faz teatro como no passado, também não se fazem mais filmes como A Viagem do Capitão Tornado.
Trailer
Curiosidades:
Massino Troisi trabalhou com Scola
em Splendor e Que Horas São?
A carruagem da trupe era puxada
a bois
O livro gerou operas, operetas, peças de teatro e cinco versões (oficiais) para o cinema: Le Capitaine Fracasse (1929), Capitan Fracassa (1940), Le Capitaine Fracasse (1943), Le Capitaine Fracasse (1961), Il viaggio di Capitan Fracassa (1990), além de duas versões pouco conhecidas: Capitan Fracassa (1909), Capitan Fracassa (1919) e uma minissérie Capitan Fracassa (1958)
O nome da trupe era “Companhia
Itinerante de Artes Cênicas" composta por Tyrant, Lady Leonarde, Serafina,
Isabella, Leandre, Zerbina, Matamore e Pulcinella
Do elenco, Ornella Muti era a
única que não vinha do teatro
Emmanuelle Béart, Vincent
Perez e Jean-François Perrier foram dublados para o italiano.
Cartazes:
Filmografias
Parciais:
Vincent Perez
Indochina (1992), A Rainha Margot (1994); Além das Nuvens (1995), O Corvo: A Cidade dos Anjos (1996), Trazido pelo Mar (1997), O Cavaleiro Vingador (1997), Os Que Me Amam Tomarão o Trem (1998), Sedução de Mulher (1998), Um Tiro no Coração (1998), Prisioneiros da Paixão (1998), O Tempo Redescoberto (1999), África dos Meus Sonhos (2000), Cães da Noite (2001), A Rainha dos Condenados (2002), Tudo Pela Honra (2003), Frankenstein (2004), O Pecado da Fé (2004), Arn: O Cavaleiro Templário (2007), Bruc - O Desafio (2010), Tráfico de Órgãos (2010), Pai por Acaso (2011), Linhas de Wellington (2012), Baseado em Fatos Reais (2017), No Portal da Eternidade (2018), A Casa de Veraneio (2018), Damas De Preto (2018), 15 Minutos de Guerra (2019), Oficial e o Espião (2019), Os Aeronautas (2019), Bolero - A Melodia Eterna (2024)
Emmanuelle Béart
O Homem que Surgiu de Repente (1972), Primeiros Desejos (1983), A Vingança de Manon (1986), Encontro com um Anjo (1987), A Viagem do Capitão Tornado (1990), A Bela Intrigante (1991), Não Dou Beijos (1991), Divertimento (1992), Um Coração no Inverno (1992), Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo (1994), Desejos Secretos (1995), Minha Secretária (1995), Missão: Impossível (1996), Don Juan (1998), O Tempo Redescoberto (1999), Sexo Entre Amigos (1999), Três Irmãs (1999), Os Destinos Sentimentais (2000), A Repetição (2001), Anjo da Guerra (2003), A História de Marie e Julien (2003), Nathalie X (2003), Inferno (2005), O Crime (2006), Segredos de Cabaré (2006), As Testemunhas (2007), Nos Embalos da Disco (2008), Espíritos Condenados (2008), Anos Incríveis (2012), Os Olhos Amarelos dos Crocodilos (2014), Noites de Paris (2022)
Ornela Muti
Massimo Troisi (1953-1994)
Ricomincio da tre (1981), Só Nos Resta Chorar (1984), Hotel Colonial (1987), Splendor (1989), Que Horas São? (1989), A Viagem do Capitão Tornado (1990), A Viagem do Capitão Tornado (1990), O Carteiro e o Poeta (1994)
Jean-François Perrier
O Baile (1983), Maccheroni (1985), Van Gogh - Vida e Obra de um Gênio (1990), A Viagem do Capitão Tornado (1990), Delicatessen (1991), Estressadíssimo (1994), Jefferson em Paris (1995), Mulheres Diabólicas (1995), Traje Adequado Obrigatório (1997)
Remo Girone
Claudio Amendola
A Veneziana (1986), Delinqüência Atrás das Grades - Mary Para Sempre (1989), A Viagem do Capitão Tornado (1990), A Rainha Margot (1994), Pasolini, Um Crime Italiano (1995), O Cavaleiro do Telhado E a Dama das Sombras (1995), Jesus, a Maior História de Todos os Tempos (minisserie 1999 - 2 episódios), Domenica (2001), Napoleão (Minissérie 2002 - 4 episódios), Devastação (2003), Suburra (2015), Hotel Gagarin (2018), Como um Gato na Marginal: Retorno a Coccia di Morto (2021)
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