quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A NOITE DEVOROU O MUNDO / LA NUIT À DEVORÉ LE MONDE / THE NIGHT EATS THE WORLDS (2018) - FRANÇA



FILME DE ZUMBI À MODA FRANCESA
(a análise tem muitos spoliers)

Sam (Anders Danielsen Lie) é um jovem franco-norueguês que vai até a casa da ex-namorada (Sigrid Bouaziz) pegar algumas coisas que deixou para trás. No local ocorre uma animada festa promovida pela anfitriã e Sam acaba por se machucar, recolhendo-se e adormecendo em um dos quartos da casa. Tempos depois, quando acorda e sai do quarto, percebe objetos revirados e rastros de sangue. Só que o pior ainda está por vir: uma praga varreu Paris e as ruas estão tomadas por hordas de mortos-vivos. Sam se estabelece no prédio e passa a ter um cotidiano de observar a rua e tentar manter-se vivo em um local que a qualquer momento poderá ser invadido pelas criaturas.



A Noite Devorou o Mundo é um filme francês do diretor estreante Dominique Rocher, baseado no livro Pit Agarmen "La nuit a dévoré le monde". Normalmente filmes de Zumbis abordam um ou mais sobreviventes tentando manter-se vivos ou tentando encontrar refúgio seguro, mas o que fazer quando já se está aparentemente seguro? Bom, aí começam as divergências entre quem assiste. Devemos ter em consideração que a produção é francesa, logo esqueçam correrias, sangue em profusão e similares até porque muitos hão de se perguntar: o que já não foi feito no gênero que possa realmente chamar a atenção? Temos, volta e meia, um filme interessante que aparece , além da série "The Walking Dead" que começou bem, mas atualmente vem sofrendo altos e baixos. Então surge um filme que tenta levar o gênero para um lado mais artístico, fora dos limites convencionais, centrando em aspectos existenciais como solidão e insanidade.


Sam começa a sentir o peso da solidão. Em um prédio cercado de Zumbis pelo lado de fora e tendo se livrado de alguns dentro, tem como única companhia um morto-vivo (o ator Denis Lavant de "Holy Motors") que prendera em um elevador, com porta sanfonada, na qual tenta manter um diálogo diário, não correspondido. As criaturas não emitem sons apenas estalos de mandíbulas e dentes. Não há o barulho de carros, música, vizinhos barulhentos, trânsito. Sam se divide entre escutar música, se alimentar com o estoque de comida que há nos vários apartamentos, criar um sistema rudimentar de captação de água e usar uma espingarda de paintball na qual treina a mira nos zumbis. Sua ânsia por companhia começa a aumentar e até um indefeso gato passando na rua pode ser um bom motivo para arriscar a vida. Sam é músico e passa a criar sons com objetos e uma bateria, passa a usá-la com todo vigor na forma de ter uma sensação de vida em meio a ausência de sons. É uma reflexão do quanto somos dependentes e nos sentimos seguros com os sons ao nosso redor. O quanto o homem é dependente da necessidade de conexão? Tudo que Sam queria quando entrou na festa era isolamento, quando surgiu a praga sentiu-se confortável com a ausência humana e agora essa ausência o está enlouquecendo (criando monstros internos). Os zumbis são uma desculpa para evitar o mundo exterior. Curiosamente nosso protagonista não tenta ligar a tv (há energia) ou entrar na internet para ver se os acontecimentos são locais ou a nível global, ou até mesmo falar com alguém.


Mas eis que surge uma reviravolta. Sam descobre não estar sozinho. Surge em cena Sarah (a atriz iraniana Golshifteh Farahan) que, após uma situação peculiar, tenta mostrar a Sam que seu isolamento e apatia frente ao novo mundo não pode permanecer para sempre. A jovem revela que há outros em condições similares e Sam deve sair do local até porque seus recursos se tornarão em algum momento escassos (há um certo desconforto com a presença de Sarah). Ela lhe revela atravessar telhados e entrar em casas à procura de mantimentos, sendo o meio mais eficiente de evitar as criaturas. Sam, em sua ânsia de se livrar da ausência de sons, atraíra à sua porta uma grande horda de mortos-vivos e sua fortaleza não parece mais tão segura. Mas há algo mais e aí entram as armadilhas do roteiro: Sarah está morta. Os diálogos nunca existiram. A jovem falecera ao entrar no prédio. A carência de diálogo e o isolamento mexeram com a cabeça de Sam. Mas, e se Sarah nunca existiu? Seria ela um antídoto à misantropia de Sam? Uma frase de Sam se torna muito elucidativa: "sou eu quem não é normal agora”. Nos olhos acinzentados de "Alfred" (o zumbi do elevador) há um reflexo da própria personalidade de Sam: melancólica. 



Podemos fazer várias especulações sobre o filme (não li o livro, talvez seja mais elucidativo): uma fábula não convencional sobre isolamento, tristeza, medo de encarar o mundo ... e aí os zumbis seriam apenas o motivo para Sam não sair de seu isolamento (ou seja do cárcere mental da qual passou a viver). Podemos até vaticinar que tudo não passa de um sonho de Sam, produto de sua imaginação ou estado de insanidade temporária. O filme deixa essa lacuna aberta para o espectador teorizar. Curioso pensar que no início do filme o personagem parecia sem direção e solitário e, agora, que nada mais resta, manter-se nessa condição o deixa quase insano. Sarah seria a oportunidade de voltar à razão, à vida, vivê-la. A saída para o telhado seria uma metáfora de que agora ele estaria pronto para atravessar novos telhados (ou aventurar-se em novos relacionamentos / enfrentar a realidade). Sim, pode ser isso ou nada disso, mas o filme poderia ser um pouco mais dinâmico em sua proposta reflexiva.

Trailer:




Trilha Sonora:
Sam et Sarah  - Anders Danielsen Lie, Golshifteh Farahani e Sébastien Schuller
Marching Flûte - Sébastien Schuller
Faded Moon - Golshifteh Farahani e Sébastien Schuller
Leviathan - Flavien Berger
Vitesse - Portland
Buona Sera -Buona Sera
Give Violence A Chance - G.L.O.S.S
Empty Details - Heb Frueman
Sam si Sympathique - Etienne Forget



Filmografia Parcial:
Anders Danielsen Lie












Herman - Aprendendo a Viver (1990); Começar de Novo (2006); Oslo, 31 de Agosto (2011); A Odisseia de Alice (2014); Aquele Sentimento do Verão (2015); Personal Shopper (2016);Rodin (2017); A Noite Devorou o Mundo (2018); Cléo & Paul (2018); 22 de Julho (2018); Seizure (2019); Bergman Island  (2020)


Golshifteh Farahani

 









Dois Anjos (2001); Boutique (2004); Baba Aziz, o príncipe que contemplou sua alma (2005); Antes da Lua Cheia (2006); Cada Um com Seu Cinema (2007); Rede de Mentiras (2008); Procurando Elly (2009); Segredos da Paixão (2011); Frango com Ameixas (2011); A Pedra de Paciência (2012); Simplesmente Uma Mulher (2012); Minha Doce Terra Amarga (2013); 118 Dias (2014); Eden (2018); Êxodo: Deuses e Reis (2014); Dois Amigos (2015); Altamira (2016); Paterson (2016); Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar (2017); Amigos para Sempre (2017); A Noite Devorou o Mundo (2018); Filhas do Sol (2018); Arab Blues (2019); Resgate (2020).


Denis Lavant

 








Os Miseráveis (1982); Sangue Ruim (1986); Os Amantes de Pont-Neuf (1991); Animais Selvagens (1997); Don Juan (1998); Bom Trabalho (1999); Pânico na Floresta (2000); Eterno Amor (2004); Holy Motors (2012); Marussia (2013); Michael Kohlhaas: Justiça e Honra (2013); Jornada ao Oeste (2014); Eva Não Dorme (2015); A Noite Devorou o Mundo (2018); 3 Dias em Quiberon (2018); Uma Revolução em Paris (2018); Falcons em Jogo (2018); Dante's Divine Comedy (2021)

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