TERROR COM HORROR METAFÓRICO
Irlanda,
outono de 1960. Os padres Thomas Riley (Lalor Roddy) e John Thornton (Ciaran
Flynn) são enviados pelo Vaticano para investigarem relatos de um milagre do
que parece ser o sangue escorrendo de uma das imagens, em um asilo remoto para
mulheres, administrado por freiras. Ao chegarem, estranhos acontecimentos
começam a sucederem-se. Thomas mostra-se indignado com as condições do
local e como as internas são tratadas, mas a Madre Superiora (Helena Bereen) demonstra pouca preocupação. Enquanto investigam os acontecimentos que os
levaram até o local, começam a perceber que o mal pode estar habitando
realmente no local.
Devemos
começar primeiro com a questão do "baseado em fatos reais". De
efeito, o que se revela verdadeiro neste filme são as chamadas "Lavanderias
Madalena" (Magdalene Laundries), instituições para onde eram levadas
mulheres, cujos comportamentos a sociedade (ou igreja) considerava inadequados.
Mulheres grávidas de namorados,
prostitutas, vítimas de incestos, relacionamentos fora do casamento ou
que "envergonharam" suas famílias. Em meados da década de 90 o
escândalo veio à tona (a realidade dos lugares eram mantidas em completo
segredo) e descobriu-se que haviam mulheres enclausuradas por 40 anos,
lavando roupas, numa espécie de expiação por seus pecados. Não havia
remuneração, pagamento e nem contato com a família. As "filhas" de
Maria Madalena (ordem de freiras irlandesas) eram mantidas encarceradas sem
nenhum direito. Em um desses lares foi encontrado um cemitério clandestino com
cerca de 3 mil covas rasas (criada ao longo de décadas). As mulheres que tinham
filhos perdiam o contato com os mesmos que iam para a adoção. Estima-se que mil
bebês foram adotados por casais americanos entre a década de 40 e 50 (em Galway
foi encontrada um vala com 400 bebês mortos sem registro ou histórico). Em 1996
foi fechado (no convento de Gloucester Street, centro de Dublin) o último
desses locais e 50 (entre 55 e 65 anos de idade) irlandesas remanescentes não
tinham para onde ir: sem laços familiares, sem dinheiro e sem moradia
Daí
os produtores resolveram buscar diretores que desejassem fazer um filme de
terror baseado nessa história e, depois de várias sondagens, coube a diretora
Aislinn Clarke (cuja pai entregava pão em alguns desses lugares) dissecar um
roteiro a 3 mãos. Segundo a própria, em entrevista, pouco se tinha do roteiro,
então transformá-lo em algo que evoluísse para um filme de terror era o
desafio. A história foi ganhando corpo e uma trama sobrenatural incorporada e,
de verdadeiro, apenas os elementos da "Lavanderia". O restante
podemos considerar como "liberdade poética". As filmagens aconteceram em um
desses locais abandonados e em uma casa que se descobriu possuir túneis. Pronto, tínhamos os locais, a inspiração e
elementos incorporados "para dar maior dramatização" (termo muito
usado atualmente no cinema de filmes "baseados em acontecimentos
reais") uma junção do terror do mundo real, usando o horror como uma
metáfora.
Mas
a falta de uma história realmente verdadeira, com quase sua totalidade em
elementos fictícios, causou dano ao filme? Basicamente, diria que não. O filme
é uma grata surpresa. A opção pelo Found Footage tornou-se bem arriscada, pois em sua grande
maioria prova-se um grande equívoco. Quando um filme faz sucesso todos gostam
de tentar tirar proveito (ou seja: copiar estilos e elementos do filme). Quando
se lança um filme nesse segmento, muitos comparam ao seu maior expoente: "A
Bruxa de Blair". Fez imenso sucesso, mas o estilo não funcionou na maioria
das produções seguintes. A Maldição da Freira é uma dessas exceções: o filme
funciona nesse formato e a opção por fazê-lo em 16mm, sem computação gráfica,
fazendo com que parecesse um documento da época, foi a melhor decisão. Essa coprodução Irlanda / Reino Unido foi
filmada em 16 dias, a um custo de $500.000 e tem muitas qualidades.
O
elenco pode ser considerado um dos aspectos mais importantes de um filme e aqui
não foi diferente: A diretora revela que a responsável pelo elenco de
"Games of Thrones" também esteve nesta produção e a composição dos
personagens ficou muito boa: temos um padre cético a fenômenos e ao
sobrenatural, ceticismo oriundo de anos de investigações sem confrontar com
nada que não fosse explicado. Temos um jovem padre "meio perdido" frente
ao que lhe é apresentado: são apenas eventos explicáveis ou há algo estranho
que a lógica vigente não explica?. Temos
uma madre superiora que surge em cenas e dá calafrios no espectador: uma mulher
misteriosa que parece saber muito mais do que demonstra e que guarda todos os
segredos que aquele "castelo mal
assombrado" oculta. A atriz Helena Bereen rouba todas as cenas em que
surge e basta o seu olhar ou aquele sorriso macabro para o espectador ficar de
sobreaviso. Afinal, ela é apenas uma pessoa que os anos transformaram em
amarguras ou ela sabe de algo que não deseja (ou não pode permitir) que venha a
público? A atuação desse trio, aliado a
jovem Kathleen (Lauren Coe), que é mantida cativa por fatos desconhecidos, prende
o espectador até o fim.
Mas
há mais alguns elementos que a cineasta sobre explorar: a imagem do filme é
propositadamente ruim, para dar um ar de anos 60; há uma sensação de medo e
claustrofobia por onde as lentes (de câmeras GoPro) de Aislinn Clarke (em seu
primeiro longa) passam e isso não pode ser desprezado em um filme cujo
propósito é dar medo e desconforto. Além dos desafios da edição e do design de som.
Não é um questionamento sobre religião e sim quando se dá poder absoluto a
determinadas pessoas. Sempre há aqueles que o utilizam para o bem e outros para
o mal. E o hábito (genuíno, conforme a diretora) da Madre Superiora, com
babados, bem diferente do tradicional, dá um ar ainda mais forte de estranheza.
A
Maldição da Freira (título nacional bem ruinzinho, calcado no sucesso "A
Freira" também de um diretor irlandês) é uma grata surpresa e, ao longo
dos anos, deve ser lembrada não como um filme excelente, mas uma produção
interessante, em vários aspectos, e que vale uma olhada. Se puder assista no
cinema, cujo ambiente é sempre mais adequado à proposta do filme.
Trailer:
Curiosidades:
Found
Footage - Trata-se de um filme se passando por um documentário filmado com uma
simples filmadora (Wikipedia)
The
Devil's Doorway pode ser traduzido como "Porta do Diabo" ou
"Caminho do Diabo"
Terceira parceria dos atores Lalor Roddy e Ciara Flynn. Juntos já haviam trabalhado em Fome (2008) e Sob o domínio dos Robôs (2014)
Filmografia Parcial:
Lalor Roddy
Best - Jogando Com O Destino (2000); O Sétimo Caminho (2001); As the Beast Sleeps (2002); Fome (2008); Rastros de Justiça (2009); Jack Taylor: The Guards (2010); Sensation (2010); The Good Man (2012); Made in Belfast (2013); Sob o Domínio dos Robôs (2014); Lost in the Living (2015); Jack Taylor: Cross (2016); Michael Inside (2017); Don't Leave Home (2018); A Maldição da Freira (2018); Float Like a Butterfly (2018); Normal People (2019)
Ciaran Flynn
Fome (2008); Robin Hood (2010); Brendan Smyth: Betrayal of Trust (2011); Sob o Domínio dos Robôs (2014); A Maldição da Freira (2018)
Terceira parceria dos atores Lalor Roddy e Ciara Flynn. Juntos já haviam trabalhado em Fome (2008) e Sob o domínio dos Robôs (2014)
Filmografia Parcial:
Lalor Roddy
Best - Jogando Com O Destino (2000); O Sétimo Caminho (2001); As the Beast Sleeps (2002); Fome (2008); Rastros de Justiça (2009); Jack Taylor: The Guards (2010); Sensation (2010); The Good Man (2012); Made in Belfast (2013); Sob o Domínio dos Robôs (2014); Lost in the Living (2015); Jack Taylor: Cross (2016); Michael Inside (2017); Don't Leave Home (2018); A Maldição da Freira (2018); Float Like a Butterfly (2018); Normal People (2019)
Ciaran Flynn
Fome (2008); Robin Hood (2010); Brendan Smyth: Betrayal of Trust (2011); Sob o Domínio dos Robôs (2014); A Maldição da Freira (2018)
Fontes:
Dread
central.com (entrevista)
Rue
morgue.com (entrevista)
Folha
de São Paulo (1996)
IMDB
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