terça-feira, 12 de março de 2019

A MALDIÇÃO DA FREIRA / THE DEVIL'S DOORWAY (2018) - IRLANDA / REINO UNIDO


TERROR COM HORROR METAFÓRICO

Irlanda, outono de 1960. Os padres Thomas Riley (Lalor Roddy) e John Thornton (Ciaran Flynn) são enviados pelo Vaticano para investigarem relatos de um milagre do que parece ser o sangue escorrendo de uma das imagens, em um asilo remoto para mulheres, administrado por freiras. Ao chegarem, estranhos acontecimentos começam a sucederem-se. Thomas mostra-se indignado com as condições do local e como as internas são tratadas, mas a Madre Superiora (Helena Bereen) demonstra pouca preocupação. Enquanto investigam os acontecimentos que os levaram até o local, começam a perceber que o mal pode estar habitando realmente no local.
 


Devemos começar primeiro com a questão do "baseado em fatos reais". De efeito, o que se revela verdadeiro neste filme são as chamadas "Lavanderias Madalena" (Magdalene Laundries), instituições para onde eram levadas mulheres, cujos comportamentos a sociedade (ou igreja) considerava inadequados. Mulheres grávidas de namorados,  prostitutas, vítimas de incestos, relacionamentos fora do casamento ou que "envergonharam" suas famílias. Em meados da década de 90 o escândalo veio à tona (a realidade dos lugares eram mantidas em completo segredo) e descobriu-se que haviam mulheres enclausuradas por 40 anos, lavando roupas,  numa espécie de  expiação por seus pecados. Não havia remuneração, pagamento e nem contato com a família. As "filhas" de Maria Madalena (ordem de freiras irlandesas) eram mantidas encarceradas sem nenhum direito. Em um desses lares foi encontrado um cemitério clandestino com cerca de 3 mil covas rasas (criada ao longo de décadas). As mulheres que tinham filhos perdiam o contato com os mesmos que iam para a adoção. Estima-se que mil bebês foram adotados por casais americanos entre a década de 40 e 50 (em Galway foi encontrada um vala com 400 bebês mortos sem registro ou histórico). Em 1996 foi fechado (no convento de Gloucester Street, centro de Dublin) o último desses locais e 50 (entre 55 e 65 anos de idade) irlandesas remanescentes não tinham para onde ir: sem laços familiares, sem dinheiro e sem moradia



Daí os produtores resolveram buscar diretores que desejassem fazer um filme de terror baseado nessa história e, depois de várias sondagens, coube a diretora Aislinn Clarke (cuja pai entregava pão em alguns desses lugares) dissecar um roteiro a 3 mãos. Segundo a própria, em entrevista, pouco se tinha do roteiro, então transformá-lo em algo que evoluísse para um filme de terror era o desafio. A história foi ganhando corpo e uma trama sobrenatural incorporada e, de verdadeiro, apenas os elementos da "Lavanderia". O restante podemos considerar como "liberdade poética". As filmagens aconteceram em um desses locais abandonados e em uma casa que se descobriu possuir túneis.  Pronto, tínhamos os locais, a inspiração e elementos incorporados "para dar maior dramatização" (termo muito usado atualmente no cinema de filmes "baseados em acontecimentos reais") uma junção do terror do mundo real, usando o horror como uma metáfora.



Mas a falta de uma história realmente verdadeira, com quase sua totalidade em elementos fictícios, causou dano ao filme? Basicamente, diria que não. O filme é uma grata surpresa. A opção pelo Found Footage  tornou-se bem arriscada, pois em sua grande maioria prova-se um grande equívoco. Quando um filme faz sucesso todos gostam de tentar tirar proveito (ou seja: copiar estilos e elementos do filme). Quando se lança um filme nesse segmento, muitos comparam ao seu maior expoente: "A Bruxa de Blair". Fez imenso sucesso, mas o estilo não funcionou na maioria das produções seguintes. A Maldição da Freira é uma dessas exceções: o filme funciona nesse formato e a opção por fazê-lo em 16mm, sem computação gráfica, fazendo com que parecesse um documento da época, foi a melhor decisão.  Essa coprodução Irlanda / Reino Unido foi filmada em 16 dias, a um custo de $500.000 e tem muitas qualidades.



O elenco pode ser considerado um dos aspectos mais importantes de um filme e aqui não foi diferente: A diretora revela que a responsável pelo elenco de "Games of Thrones" também esteve nesta produção e a composição dos personagens ficou muito boa: temos um padre cético a fenômenos e ao sobrenatural, ceticismo oriundo de anos de investigações sem confrontar com nada que não fosse explicado. Temos um jovem padre "meio perdido" frente ao que lhe é apresentado: são apenas eventos explicáveis ou há algo estranho que a lógica vigente não explica?.  Temos uma madre superiora que surge em cenas e dá calafrios no espectador: uma mulher misteriosa que parece saber muito mais do que demonstra e que guarda todos os segredos que aquele  "castelo mal assombrado" oculta. A atriz Helena Bereen rouba todas as cenas em que surge e basta o seu olhar ou aquele sorriso macabro para o espectador ficar de sobreaviso. Afinal, ela é apenas uma pessoa que os anos transformaram em amarguras ou ela sabe de algo que não deseja (ou não pode permitir) que venha a público?  A atuação desse trio, aliado a jovem Kathleen (Lauren Coe), que é mantida cativa por fatos desconhecidos, prende o espectador até o fim.



Mas há mais alguns elementos que a cineasta sobre explorar: a imagem do filme é propositadamente ruim, para dar um ar de anos 60; há uma sensação de medo e claustrofobia por onde as lentes (de câmeras GoPro) de Aislinn Clarke (em seu primeiro longa) passam e isso não pode ser desprezado em um filme cujo propósito é dar medo e desconforto. Além dos desafios da edição e do design de som. Não é um questionamento sobre religião e sim quando se dá poder absoluto a determinadas pessoas. Sempre há aqueles que o utilizam para o bem e outros para o mal. E o hábito (genuíno, conforme a diretora) da Madre Superiora, com babados, bem diferente do tradicional, dá um ar ainda mais forte de estranheza.



A Maldição da Freira (título nacional bem ruinzinho, calcado no sucesso "A Freira" também de um diretor irlandês) é uma grata surpresa e, ao longo dos anos, deve ser lembrada não como um filme excelente, mas uma produção interessante, em vários aspectos, e que vale uma olhada. Se puder assista no cinema, cujo ambiente é sempre mais adequado à proposta do filme.

Trailer:


Curiosidades:
Found Footage - Trata-se de um filme se passando por um documentário filmado com uma simples filmadora (Wikipedia)

The Devil's Doorway pode ser traduzido como "Porta do Diabo" ou "Caminho do Diabo"

Terceira parceria dos atores Lalor Roddy e Ciara Flynn. Juntos já haviam trabalhado em Fome (2008) e Sob o domínio dos Robôs (2014)


Filmografia Parcial:
Lalor Roddy
Best - Jogando Com O Destino (2000); O Sétimo Caminho (2001); As the Beast Sleeps (2002); Fome (2008); Rastros de Justiça (2009); Jack Taylor: The Guards (2010); Sensation (2010); The Good Man (2012); Made in Belfast (2013); Sob o Domínio dos Robôs (2014); Lost in the Living (2015); Jack Taylor: Cross  (2016); Michael Inside (2017); Don't Leave Home (2018); A Maldição da Freira (2018); Float Like a Butterfly (2018); Normal People (2019)

Ciaran Flynn
Fome (2008); Robin Hood (2010); Brendan Smyth: Betrayal of Trust  (2011); Sob o Domínio dos Robôs (2014); A Maldição da Freira (2018)
 


Fontes:
Dread central.com (entrevista)
Rue morgue.com (entrevista)
Folha de São Paulo (1996)
IMDB
  

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