AMIZADE E POESIA
Anos 50. Mario Ruoppolo (Massimo Troisi) é um ingênuo filho de pescadores que busca emprego em um tranquilo e distante vilarejo, em uma ilha na Itália, na costa de Nápoles, um local onde pequenas mudanças e novas ideias aportam lentamente. Com a chegada do famoso escritor e poeta chileno Pablo Neruda (Philippe Noiret), exilado de sua terra natal por causa de suas visões comunistas e que conseguiu asilo político temporário no país, haverá a necessidade de se contratar um carteiro particular devido ao enorme volume de cartas que chegará à localidade. E Mario consegue o emprego, pois ao contrário da maioria das pessoas na ilha, ele sabe ler. Mas há algumas regras: o salário é baixo (e talvez uma possibilidade de boas gorjetas) e um aviso de não perturbar o poeta.
Mario fica imediatamente fascinado por Neruda, que parece receber cartas principalmente de mulheres ainda que este não dê muita importância ao fato, pois veio acompanhado a esposa Matilde (Anna Bonaiuto) da qual mostra ter um relacionamento muito sólido. No convívio diário, uma improvável amizade floresce e sob a influência de Neruda, Mario descobre a poesia, ao mesmo tempo que descobre Beatrice (Maria Grazia Cucinotta), uma jovem que trabalha em uma taberna e cujo nome seduziu poetas por séculos. As percepções e questionamentos de Mario começam a chamar a atenção de Neruda que percebe em seu novo amigo certa sensibilidade para com as metáforas poéticas. Quando o tímido Mario lhe pede ajuda para conquistar Beatrice, o poeta se torna o grande incentivador em sua façanha de conquistar o coração de sua amada.
Filmado nas ilhas mediterrâneas, esta produção ítalo-francesa teve como inspiração o livro “Ardiente Paciencia” (1985), lançado no Brasil pela Editora Record e antes pela Brasilience com o título “Ardente Paciência”, do escritor chileno Antonio Skármeta. O ator Massini Troisi teve a ideia de filmar o romance depois de encontrar em uma livraria e pedir ao produtor Vitorio Cechi Gori para comprar os direitos de adaptação, e assim transformá-lo em uma versão livre, deslocando para a Itália a narrativa orginalmente ambientada no Chile (com um exílio inventado). O pescador que tinha 17 anos, virou carteiro de 40 anos no filme. A produção acabou indicada ao Oscar nas categorias Melhor Filme (perdeu para Coração Valente), Melhor Diretor (perdeu para Coração Valente), Melhor Ator (perdeu para Nicolas Cage por Despedida em Las Vegas), Melhor Roteiro Adaptado (perdeu para Razão e Sensibilidade) e Melhor Trilha Sonora – Drama (o único Oscar que o filme levou). Talvez alguns leitores aqui devam estar confusos porque a categoria de Melhor Filme (um fato raro) e não Melhor Filme Estrangeiro? Não pode concorrer na categoria de Filme Estrangeiro porque a Academia impedia a participação se as obras fossem dirigidas por cineastas de língua inglesa – ainda que Massimo Troisi tenha co-dirigido, Michael Radford (diretor de “1984”) é britânico. A Itália indicou “O Homem das Estrelas” (que entrou na Briga) e a França “Uma Cama para Três” como seus representantes na premiação, mas quem levou foi “A Excêntrica Família de Antônia” (Holanda). O Brasil esperava o prêmio com “O Quatrilho”. Um dos motivos do filme chegar ao Oscar foi o fato de a Miramax investir pesado na divulgação, U$1,5 milhões, e lança-lo em 200 salas comerciais americanas, por ser um filme legendado nos EUA (americanos não gostam de legendas), foi uma surpresa.
Surpreendente e justificado sucesso de bilheteria, é um filme que fica na memória. Fala sobre solidão e sincera amizade entre dois homens de níveis opostos. E sem precisar apelar, conta uma estória de inegável teor humanitário comovendo o público pela pureza de suas intenções. Se Mário aprende com Neruda, este também pode aprender com as pessoas entre as quais ele veio conviver. Uma comédia dramática com um final poético. Nos mostra que devemos valorizar o que temos. Neruda lhe pergunta o que há de bom na ilha paradisíaca, e por paixão e /ou falta de percepção das belezas que o cerca, diz que é apenas “Beatrice Russo”, mas o convívio com o poeta despertará uma posterior percepção no carteiro. E Mario, humilde e puro de coração, se apaixona e se descobre também um poeta. O final nos dá com muito tato uma meditação silenciosa sobre destino, sobre o valor de não deixar as amizades esfriarem e o valor da poesia.
No elenco, Massimo Troisi, um ator muito conhecido na Itália, por aqui era lembrado por “ A Viagem do Capitão Tornado”. Troisi faleceu no dia seguinte a conclusão do filme, de infarto, aos 41 anos. O ator que teve febre reumática na infância e fez uma ponte de safena quádrupla quando tinha 19 anos. Conviveu com sérios problemas cardíacos durante a vida. Estava à espera de um transplante quando surgiu a oportunidade de rodar este filme. Adiou uma cirurgia para conclui-lo. Desmaiou no set de filmagem no terceiro dia e só conseguia filmar por cerca de uma hora por dia (em várias cenas foram usados dublês). Depois de sabermos disso, percebemos melhor as marcas de cansaço do ator: sua respiração entrecortada, sua fala baixa, seu movimentar lento e seu olhar elegíaco. Seu personagem carrega o dom do sorriso discreto e da lágrima contida e um componente de dor real. Sua indicação póstuma ao Oscar, até então, só tinha um precedente: a indicação de James Dean por “Vidas Amargas” e “Assim Caminha a Humanidade” (1955). Talvez tenha sido sua doença ou seu talento que o tenha feito interpretar o papel de uma forma tão discreta e tão poética. Mas o seu coração permaneceu no filme. Philippe Noiret recebeu uma ligação do diretor Michael Radford e não hesitou. Fez todas as suas falas em francês (na cena em que eles estão discutindo metáforas na praia, ele e Massimo não conseguiam entender o que o outro estava dizendo) o que não impediu uma cena perfeita. Seu Neruda tem um efeito transformador em Mário tanto quanto as percepções da vida e do coração, quanto as políticas. Depois de cinco audições, Maria Grazia Cucinotta conseguiu o papel de Beatrice (ou “Beatriz” - inspiração de Dante Alighieri e Gabriele d'Annunzio, citados no filme), uma garota típica do sul da Itália que, aos poucos, vai se encantando com a simplicidade de seu pretendente.
O Carteiro e o Poeta é um grande filme, sua temática universal o torna atemporal. É indicado para um público que gosta de refletir sobre aspectos da vida, como já dito, da importância de se manter e valorizar as amizades sejam elas distantes ou próximas porque a vida não manda avisos; de se ver algo diferente de “bombas, tiros e explosões” tão comum no cinema contemporâneo. Aqui tudo se encaixa: direção, roteiro, trilha sonora e atuações. Um grande momento do cinema.
Trailer:
Curiosidades:
Ganhou
a Mostra Internacional de São Paulo
Pablo
Neruda esteve realmente exilado na Itália por um tempo, em 1952
Salvador
Allende e Pablo Neruda faleceram em 1973
O co-roteirista e ator principal Massimo Troisi e o produtor Mario Cecchi Gori receberam indicações póstumas ao Oscar por seu trabalho neste filme
Massimo Troisi estava tão fraco que só lhe era possível trabalhar cerca de uma hora por dia. A maioria de suas cenas foi filmada em uma ou duas tomadas. Um cronograma de filmagem foi projetado para permitir que o filme fosse rodado em torno dele. Isso foi muito ajudado pelo fato de seu substituto ter uma semelhança impressionante com Troisi. Ele foi usado de costas para a câmera, tomadas longas/médias e na maioria das sequências de andar de bicicleta. O diretor Michael Radford disse que, ao assistir ao filme depois de editado, nem mesmo ele conseguiu perceber a diferença entre os dois homens.
Uma praça pública em Procida (uma das ilhas onde o filme foi rodado) recebeu o nome do falecido Massimo Troisi em homenagem à sua última atuação.
A exibição teatral na cidade de Nova York foi tão longa (quase dois anos) que ainda estava nos cinemas após o lançamento do vídeo e sua exibição a cabo
Esta é uma adaptação do romance Ardiente Paciência (1985) de Antonio Skármeta. Em 1983 o escritor já havia rodado um filme homônimo sobre o assunto: Ardente Paciência (1983).
O filme foi rodado em 11 semanas, com apenas uma pausa para o feriado da Páscoa.
A caneta esferográfica Bic Cristal usada pelo carteiro Mário em diversas cenas foi lançada em dezembro de 1950 e é a caneta mais vendida no mundo
Philippe Noiret havia feito outro filme de grande repercussão: Cinema Paradiso. Sua filmografia é extensa
Philippe Noiret faleceu aos 76 anos, em 2006, após uma longa batalha contra o câncer.
Maria Grazia Cucinotta esteve em 007 - O Mundo Não é o Bastante (1999)
Pablo Neruda foi um poeta-diplomata chileno e político que ganhou o Prêmio Nobel da Literatura em 1971. A causa da morte oficial foi câncer de próstata, dias após o golpe militar de 1973 no Chile. Testes forenses realizados em laboratórios dinamarqueses e canadenses indicaram que o corpo de Neruda tinha "uma grande quantidade de "Cloristridium botulinum", o que sugeria envenenamento. Em 2023 um pedido de nova investigação foi rejeitada (fonte: npr.org)
Até o momento desta postagem o filme encontra-se no YouTube
Maria Grazia Cucinotta na Música "Diamante" de Zucchero
Cartazes:
Filmografias Parciais:
Massimo Troisi (1953-1994)
Ricomincio da tre (1981), Só Nos Resta Chorar (1984), Hotel Colonial (1987), Splendor (1989), Que Horas São? (1989), A Viagem do Capitão Tornado (1990), A Viagem do Capitão Tornado (1990), O Carteiro e o Poeta (1994)
Philippe Noiret (1930-2006)
O Brotinho e as Respeitosas (1949), Zazie no Metrô (1960), Cyrano de Bergerac (1960), Le Capitaine Fracasse (1961), O Encontro (1961), Todo o Ouro do Mundo (1961), Amores Célebres (1961), Relato Intimo (1962), As Massagistas (1962), A Farsa do Amor e da Guerra (1966), Amante à Italiana (1966), O Adorável Canalha (1966), Quem é Polly Maggoo? (1966), A Noite dos Generais (1967), Sete Vezes Mulher (1967), Sr. Liberdade (1968), O Sindicato do Crime (1969), Topázio (1969), Seu Último Combate (1971), O Atentado (1972), A Serpente (1973), O Relojoeiro (1974), Os Alegres Subterrâneos de Paris (1974), O Jogo com o Fogo (1975), O Juiz e o Assassino (1976), O Deserto dos Tártaros (1976), Uma Mulher na Janela (1976), Minha Querida Detetive (1977), Quem está Matando os Grandes Chefes? (1978), Um Olhar Para a Vida (1980), Três Irmãos (1981), Quinteto Irreverente (1982), Golpe de Tiras (1984), Amor de Verão (1985), Tomara Que Seja Mulher (1986), Por Volta da Meia-Noite (1986), A Família (1987), Máscaras (1987), O Homem Que Plantava Árvores (1987), Três Destinos (1988), Cinema Paradiso (1988), A Volta dos Mosqueteiros (1989), A Vida e Nada Mais (1989), Socorro! Chamem o Ladrão (1990), Armadilhas do Poder (1990), Sempre aos Domingos (1991), A Filha de D'Artagnan (1994), O Carteiro e o Poeta (1994), Os Canastrões (1996), O Cavaleiro Vingador (1997)
Maria Grazia Cucinotta
Viagem de Amor (1990), Reproduta Interdita (1990), O Carteiro e o Poeta (1994), O Dia da Besta (1995), O Quarto Rei Mago (1997), Homens de Honra (1998), Lembranças de Um Verão (1998), 007 - O Mundo Não é o Bastante (1999), Maria Madalena (2000), Juntando os Pedaços (2000), Tomé (2001), Devastação (2003), Aluga-se um Marido (2004), Crianças Invisíveis (2005), Flores Negras (2009), O Amor Me Transformou (2009), O Ritual (2011), Um Amor de Película (2012), A Mulher do Alfaiate (2014), Santa Guerra (2022), Violet no Mundo da Fantasia (2023)
Anna Bonaiuto
Amor e Anarquia (1973), A Virilidade (1974), Cidade das Mulheres
(1980), A Amante do Rei (1990), Gestos de Amor (1993),
O Carteiro e o Poeta (1994), O Crocodilo (2006), Meu Irmão é Filho Único
(2007), Bianco e nero (2008), O Divo (2008), Nós Acreditávamos (2010), Viva a
Liberdade (2013), Monte (2016), Nápoles Velada (2017), Divine (2020), O Melhor
Está por Vir (2023)
Luís, td bem?
ResponderExcluirVi O Carteiro e o Poeta no cinema quando estava na faculdade.
Namorava uma garota na época que se divertiu muito com o fato de sermos eu e o protagonista homônimos. E mesmo sendo isto apenas uma tolice, me diverti também com a graça que ela me fez. É essa lembrança — doce — que agora retorna.
Filme bonito — nunca vi ninguém desdizer aqueles cenários do mediterrâneo —, que nos faz sair do cinema melhor do que entramos. Uma daquelas obras que nos lembra das coisas importantes da vida e o jeito certo de alcançá-las.
Confesso que ele hoje está um pouco apagado da minha memória, por isso não deixo aqui nenhuma observação mais específica, particularmente sobre as interpretações.
Mas fiquei tocado por saber da morte de Massimo Troisi e isto pesou ao assistir o filme. Creio que foi um fator de divulgação indesejável. Mas — pois é — atraiu a atenção das platéias pelo mundo.
Gosto muito de Splendor, com Troisi e Mastroianni. Um inusitado ( e creio que involuntário ) cover de Cinema Paradiso, não é? Assistirei seu Capitão Fracassa para conversarmos um pouco mais sobre esse simpático ator.
Um pequeno adendo: O Quatrilho foi emblemático para o renovação do Cinema Nacional. Lembra da empolgação da mídia e do meio cultural? Achávamos que o Oscar viria.
Olha, não há como ficar indiferente a obras como Il Postino. Espero que todos os leitores dessa sua resenha fiquem motivados a descobrir isso.
Um grande abraço, Luís.
Bom dia Mario.
ExcluirTambém vi esse filme no cinema, o que sempre me trará boas lembranças. Foi com o filme Valmot (uma versão francesa de Ligações Perigosas) que comecei a conhecer "o circuito alternativo", como se chamava os filmes não comerciais. "Capitão Tornado" foi um dos que vieram em seguida. Em algum momento chegaria O Carteiro e o Poeta, que me lembro ter assistido perto de outro filme bem realizado: Mediterrâneo. Foi uma época com bons filmes como Filhos da Guerra, Europa, Não Amarás, Não Matarás. Filmes que começavam a desviar meu olhar para a reflexão e novas percepções. De certa forma, eu estava saindo da "caverna", de Platão.
A morte do ator foi realmente uma grande perda. Não o reconheci de "Capitão Tornado" quando vi este filme, a facilidade para encontrar biografias não era tão fácil como hoje e não me lembro de ter lido nas revistas de cinema da época esse fato e sim a ênfase no seu falecimento após as filmagens. Mas, quando chegou ao VHS houve alguns comentários em análises e descobri. A interpretação da dupla Massimo e Noiret deu ao roteiro e direção tudo que era necessário para o filme funcionar. Claro que o restante dos elementos descritos na análise também se encaixaram. Um filme como você bem disse: "não há como ficar indiferente".
Quanto a Splendor, não assisti. Vou buscá-lo, com certeza. Já a sua citação de Cinema Paradiso, vai exatamente de encontro ao próximo filme que estou analisando. Não poderia deixar de fora o filme de Giuseppe Tornatore nessa "trilogia de análises". Revi semana passada o filme , pois só o havia assistido no cinema e ainda revi o director's cut que me trouxe uma outra percepção da obra. Acredito que a imposição do mercado de cortar o filme de quase 3 horas para encaixá-lo em uma metragem de 2 horas e assim agradar o exibidores, tenha sido, no final, uma decisão sábia. A extensão do filme, se por um lado trouxe um desfecho para Salvatore e Helena, por outro lado, para mim, mudou a minha percepção sobre alguns personagens. Ou seja , fico com versão do cinema e acho que, como curiosidade, vale a pena ver o que o diretor pretendia com a extensão completa. Mas isso vai estar na próxima análise que talvez fique mais o final de semana.
O Quatrilho foi uma grande esperança, mas ao assisti-lo achei que não ganharia. Não era o tipo de filme que a Academia escolheria, uma pena, mas o Oscar de filme estrangeiro é muito mais do que ser um grande filme, envolve muita política e convencimento. A revista Set, uma vez, mostrou os caminhos que filmes estrangeiros tem para ganhar um Oscar. Vamos ver se "Ainda Estou Aqui" consegue essa façanha (ainda não assisti) que Central do Brasil e Cidade de Deus infelizmente não conseguiram.
Mário, muito obrigado por sempre comentar. Até uma próxima análise. Um grande abraço.
Luís
ResponderExcluirÓtima alegoria a “sair da caverna” de Platão. Me pergunto qual foi esse filme para mim. Acho que foi Lawrence da Arábia
Mediterrâneo vi e acho maravilhoso. Poético, uma grande mensagem de união universal.
Olha, que surpresa vc não ter visto Splendor. Uma elegia ao Cinema. E ao crítico de cinema incluso, vc vai ver.
Cinema Paradiso é simplesmente um dos maiores filmes que já assisti. Fala diretamente ao coração. Uma grande responsabilidade resenhá-lo, mas vc vai saber fazer o seu melhor, não tenho dúvida. E já vou revê-lo então, ok?
Luís, aquele abraço!