quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

ALMAS PERVERSAS / SCARLET STREET (1945) - ESTADOS UNIDOS

 

A CORRUPÇÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS PELO DINHEIRO

Christopher Cross (Edward G. Robinson) é caixa de um banco que recebe um prêmio por seus 25 anos de trabalho, de dedicação e honestidade.  Ao final da reunião, vê seu chefe indo para casa acompanhado de uma linda jovem, e confidencia ao colega o desejo de ter a mesma sorte.  Voltando para casa, presencia uma bela jovem sendo esbofeteada por um estranho e intervém. O homem fica caído ao chão e Christopher procura ajuda da polícia, mas, quando retornam, este já havia escapado. A jovem revela ter sido assaltada, e “Chris” a acompanha até a sua casa, parando em um pequeno café onde travam uma breve conversa, o suficiente para descobrir que seu nome é Katharine “Kitty”' (Joan Bennett) que lhe revela falsamente ser uma candidata a atriz, enquanto Chris a deixa acreditar que é um rico pintor de quadros.

Os encontros entre a dupla começam a progredir sem que Chris saiba que sua paixão é perdidamente apaixonada por Johnny Prince (Dan Duryea), um homem sem escrúpulos,  justamente quem a agredira naquela noite.  Johnny, ao acreditar que Chris ganha dinheiro vendendo quadros, elabora um plano para que a dupla possa usufruir de parte desse dinheiro: Kitty deverá pedir dinheiro para sair do local onde mora. Dito e feito. Mesmo sem ter o dinheiro necessário e sendo casado com Adele (Rosalind Ivan) uma mulher que o despreza, ele coloca sua amada em um luxuoso apartamento. Só que a jovem, sabendo que Chris parece aceitar todos os seus desejos, lhe impõe que consiga uma alta quantia para financiar sua carreira. Chris consegue o dinheiro, mas com um preço a ser pago: sua vida sofrerá um revés que o deixará: sem amigos, sem escrúpulos, sem reputação e sem lar.

De quando em vez Hollywood oferece algo de surpreende em matéria de cinema. E “Almas Perversas” (Scarlet Street – em uma tradução literal: "Rua Escarlate") foi uma dessas produções, rodeada de polêmicas e um sucesso que gerou detratores e entusiasmados defensores. Extraído do livro "La chienne" (“A Cadela”) do escritor George de la Fourchadire, foi convertido em peça pelo seu autor e já havia sido filmada por Jean Renoir em 1931. Essa versão de 1945 foi uma história audaciosa para a época: forte, absorvente, pesado e realista gerando uma proibição pelos censores dos estados de Nova York, Milwaukee e Atlanta por causa de suas opiniões interpretativas de que a personagem, interpretado por Joan Bennett, era sexualmente "imoral" e o filme "licencioso, profano, obscuro e contrário à boa ordem da comunidade".

Almas Perversas foi recebido, por parte da crítica, como um derivado sombrio e profundo de "Um Retrato de Mulher" - The Woman in the Window -  (já que o diretor e o trio principal eram os mesmos) e como um pedido de desculpas de Lang pelo "erro" do final desse filme. Só que as semelhanças, dizem, param por aí. Há um tom de ironia em Almas Perversas que permeia esse filme noir do início ao fim: a ironia das unhas pintadas, a ironia dos quadros pintados por Chris sem perspectivas se comparado a sua vida passada e futura, além da perspectiva que o filme oferece ao espectador. Todo relacionamento no filme é construído sobre ironias: falsas suposições, mal-entendidos, enganos deliberados; a ironia de um Chris, no início, se comparado ao Chris no final da projeção; Kitty nunca percebendo a perigosa propensão de Chris; a prisão de Johnny Prince... até mesmo o modo como Chris atrai o marido de Adele: dois movimentos verticais da lanterna seguidos por dois movimentos horizontais - é o simbolismo de uma (dupla) cruz. Mas nada é por acaso. O roteiro de Dudley Nichols (um tarimbado escritor de grandes filmes) é carregado de simbolismos e a forma como o diretor (e aqui também produtor) europeu Fritz Lang (Metropolis) o conduz, se transforma diante dos olhos dos espectadores. O resultado é uma sensação contínua de deslocamento, uma impressão tênue, mas indelével de realidade. É, acima de tudo, sobre a sociedade americana.

Vejamos algumas sutilezas: O único personagem que não é primariamente motivado por dinheiro é Chris. O dinheiro está atrelado a várias sucessões de eventos nesse filme: o relógio de 14 quilates que Chris ganha; Johnny explorando Kitty por dinheiro, e a femme fatale Kitty (por sua vez) a Chris; a esposa sempre lembrando Chris de sua impotência financeira em comparação com seu “falecido” marido; o mundo da arte (assim como a própria Hollywood) mais preocupado com o que vai vender do que com o valor artístico da obra... Chris se casou apenas por interesse - economia do aluguel do quarto; a tirania que sofre é revelada quando precisa levar o amigo para ver seus quadros no banheiro de casa; o prêmio do relógio é o carimbo de sua (até então) honestidade; a garota loira à espera do patrão, e a inveja que imbuí em Chris o desejo de ter algo semelhante com o destino providenciando seu desejo de forma funesta, irônica, na primeira mulher que lhe surge no caminho. E o roteiro continua bem interessante ao sugerir o que poderia ser uma sucessão de epílogos: a conversa no trem sugere uma possível reavaliação na consciência por parte do protagonista (parte da cena foi cortada pela censura); a porta que se fecha na sala de execução com o reflexo do anúncio luminoso; o protagonista em seu apartamento poderia ser um final bem interessante (não irei revelá-lo), mas que Lang deixa em suspensão na mente do espectador para apresentar um outro igualmente reflexivo e definitivo. Já Lang mostra a descida autodestrutiva de Chris. Depois de ser homenageado, sua vida sofre um revés e ele mergulha nas profundezas do desespero e da humilhação. A atração fatal que sente por Kitty, combinada com a perda de seu emprego e sua paixão artística, o arruína completamente. Chris se revela um  anti-herói completamente devastado pela culpa, por se considerar um tolo e pelo remorso - sua própria existência agora é pior do que a morte. A monotonia inicial do filme se transforma, intensamente, próximo ao seu terço final nos revelando uma história aparentemente comum revestida de intenso realismo e de emocionante humanidade. A maioria de nós já se deparou com esses indivíduos ou presenciou (ou ouviu)  histórias bem próximas: um pacato cidadão que, de um momento para o outro, comete as maiores loucuras pelo amor de uma criatura sem escrúpulos, de pessoas que vivem as custas da exploração e desgraça alheia.

Os censores americanos restringiram vários filmes, cuja temática parecesse influenciar sua sociedade. Sempre pareceu uma contradição que esse “guardiões da moralidade”, em seu cuidado em não brutalizar ou degenerar sua sociedade pelas artes, virassem seus rostos frente às imensas atrocidades de duas grandes guerras na qual milhões de soldados e inocentes morreram ou foram massacrados de forma brutal.  O mundo não tinha mais a inocência que queriam esconder. Já era tarde. A sociedade na vida real era uma, na mente dos censores outra. Lang, um europeu, jogou "na cara" da sociedade americana, através de um produtor independente, o que esta fingia não ver. Mostrou que a decadência moral estava às suas portas, mas que alguns preferiam que seus pares não as vissem. 

O trio central está soberbo, o que contribuiu para o filme se tornar o sucesso merecido na época, apesar de nos dias atuais estar praticamente relegado ao esquecimento.  Edward G. Robinson é força motriz do filme, seu personagem transborda particularidades de acordo com que o filme evolui se revelando um homem que casou para não ficar sozinho e cuja esposa pouca importância lhe dá. Conhece uma jovem que julga ter conquistado o coração e mergulha em um caminho sem volta. Joan Bennett é a clássica “femme fatale” de um filme noir: ardilosa, inescrupulosa e insensível a tragédia que voluntariamente produz, mas que aceita ser agredida física e moralmente por quem é apaixonada e lhe explora.  Dan Duryea ganhou muitos elogios com seu Johnny Prince: um homem violento, egoísta, cínico, mesquinho que vive de explorar Kitty sem amá-la. Ele pouco se importa com a tragédia que promoverá, seu intento é estar bem financeiramente. Rosalind Ivan faz uma Adele que não percebe a transformação de seu marido e vive comparando-o com o seu falecido esposo da qual herdou uma bela quantia. Quando diz a Chris que seus quadros irão para o lixo, ela se mostra uma pessoa sem nenhuma empatia com a única coisa que dá prazer ao triste pintor amador de final de semana com um dom que desconhece.

Almas Perversas é um filme independente e provocativo não sendo orientado a todo tipo de público, pois tem uma forte mensagem moralista, bem anos 40, direcionada aqueles que teimam em mudar o curso natural da vida. Explora o velho tema da paixão amorosa que toma muita gente na meia idade, que ganha proporções que nem todo espectador espera em uma produção dessa época. E se não fosse dirigido por Fritz Lang não seria um grande filme. Hollywood, com poucas exceções, abandonou esse tipo de filme. E a sociedade atual não possui mais a ingenuidade de outrora. Indicado a aqueles que procuram filmes que possuam roteiros e direção acima da média, assim como filmes que volta e meia são lembrados por sua ousadia para a época em que foram produzidos. Uma época em que uma boa história valia mais a pena ser contada do que realizar um “blockbuster” sem conteúdo.


Trailer:



Curiosidades:

Um dos filmes favoritos de Fritz Lang .

Doze pinturas feitas para o filme por John Decker foram enviadas ao Museu de Arte Moderna de Nova York para exibição em março de 1946.

De acordo com Ben Mankiewicz no TCM, quando lançado pela primeira vez, os conselhos de censura locais em Nova York, Milwaukee e Atlanta proibiram este filme inteiramente por ser "licencioso, profano, obscuro e contrário à boa ordem da comunidade".

É o primeiro de dois remakes que Fritz Lang fez dos filmes de Jean Renoir. Enquanto A Cadela (1931) inspirou "Almas Perversas (1945)", A Besta Humana (1938) inspirou Desejo Humano (1954). Notoriamente, Renoir não gostava de ambos.

O personagem de Robinson fala carinhosamente sobre arte e diz que gostaria de ter um Cezanne. Na vida real, Robinson era um grande colecionador de belas artes e considerado um especialista.

As duas pinturas que Dan Duryea tenta penhorar, e depois sai com o artista exibindo seu trabalho na rua, apareceram em 1964 na vitrine da galeria de arte de Reginald Gardiner em A Lei de Burke: Quem matou qual é o nome dele? (1964).

A falha do detentor original em renovar os direitos autorais do filme resultou na sua queda em domínio público, o que significa que praticamente qualquer pessoa pode duplicar e vender uma cópia em VHS/DVD do filme. Portanto, muitas das versões deste filme disponíveis no mercado são severamente (e geralmente mal) editadas e/ou de qualidade extremamente baixa, tendo sido enganadas por cópias de segunda ou terceira geração (ou mais) do filme.



Cartazes:













Filmografia Parcial:

Edward G. Robinson (1893 - 1973)







O Último Gangster (1937); Eu Sou a Lei (1938); O Lobo do Mar (1941); Pacto de Sangue (1944); Almas Perversas (1945); Paixões em Fúria (1948); Os Dez Mandamentos (1956); A Cidade dos Desiludidos (1962); Robin Hood de Chicago (1964); Crepúsculo de Uma Raça (1964); A Mesa do Diabo (1965); O Ouro de Mackenna (1969); Canção do Sol da Meia Noite (1970); No Mundo de 2020 (1973).


Joan Bennett (1910–1990)







Soberania (1928); Amante de Emoções (1929); O Galã (1929); Moby Dick (1930); Mulher Indomável (1932); As Quatro Irmãs (1933); O Direito à Felicidade (1934); Mississippi (1935); Olhos Castanhos (1936); Quase Casados (1936); A Heroína do Texas (1938); O Homem da Máscara de Ferro (1939); Inferno Verde (1940); O Filho de Monte Cristo (1940); Correspondente Especial (1941); Um Retrato de Mulher (1944); Almas Perversas (1945); Mulher Desejada (1947); O Segredo da Porta Fechada (1947); Na Teia do Destino (1949); O Papai da Noiva (1950); O Último Jogo (1951); Consciência Culpada (1954); Veneno de Cobra (1955); Chamas Que Não se Apagam (1955); Ecos do Passado (1960) Nas Sombras da Noite (1970); Suspiria (1977); Guerras do Divórcio (1982);

 

Dan Duryea (1907–1968) 







Pérfida (1941);  Ídolo, Amante e Herói (1942); Mrs. Parkington, a Mulher Inspiração (1944); Apenas um Coração Solitário (1944); A Grande Paixão (1945); A Dama Desconhecida (1945); Almas Perversas (1945); Almas Perversas (1946); Bandido Apaixonado (1948); Aves de Rapina (1948); Numa Noite Sombria (1949); Winchester '73 (1950); Sob o Manto da Intriga (1950); Entre o Crime e a Lei (1951); Homens Indomáveis (1954); Homens Indomáveis (1954) Sangue de Mestiço (1955); Ódio Entre Irmãos (1955); Hino de uma Consciência (1957); Honra de Ladrão (1957); A Passagem da Noite (1957); Uma Pequena do Barulho (1958); A Ilha das Víboras (1960); Gatilhos em Duelo (1962); Onde a Bala é Lei (1964); Apenas uma voz (1964); Império da Vingança (1964); Dólares Malditos (1965); O Voo da Fênix (1965); Pistoleiros sem Alma (1966); Sangue nas Montanhas (1966); Cinco Dragões Dourados (1967); A Caçada (1967); A Caldeira do Diabo (seriado 1967-1968);  O Disco Voador (1968)

Rosalind Ivan (1880–1959)


 

 

 



Dúvida (1944); O Coração não Envelhece (1945); Desforra em Argel (1945); Almas Perversas (1945); Justiça Tardia (1946); O Golpe Final (1946); Ivy, a História de uma Mulher (1947); Belinda (1948); O Manto Sagrado (1953); No Caminho dos Elefantes (1954)


Fontes:

Cine Actions

Street with no name: a history of the classic

IMDB

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