"O
ESTADO, O MAIS FRIO DOS MONSTROS" (Friedrich Nietzsche)
Daniel
Blake é um cidadão, de 59 anos, como
tantos outros nesse mundo: trabalhava como carpinteiro, a esposa faleceu e acabou
sendo acometido de um infarto que o impossibilita exercer sua profissão. Sua
médica lhe adverte que sua saúde, começa a dar sinais de melhora, mas
trabalhar, no momento, está completamente fora de cogitação.
Blake
precisa pagar suas contas, precisa se alimentar, logo, ir atrás dos direitos
que o seu duro trabalho, ao longo dos anos, lhe garantiu é algo absolutamente
normal. Ou deveria ser. O que Blake começa a perceber é que caiu numa teia da
aranha. Sua teia tem uma cola poderosa e vai imobilizá-lo. Essa teia se chama
governo e a cola se chama burocracia. Pode até ser que o espectador esteja
pensando: já assisti a esse tipo de filme. E provavelmente seja verdade. Mas de
tempos em tempos o cinema nos brinda com algo diferente, algo que nos comove,
nos indigna e nos faz refletir mesmo depois do final de sua projeção. Eu,
Daniel Blake é um desses momentos.
Cabe
ao espectador, assim como o personagem, assistir a tudo de forma impotente e
com perplexidade. Vemos Blake ficar 48 minutos escutando aquela musiquinha
chata para descobrir que um mecanizado operador de atendimento apenas lhe
dirige frases prontas e vazias, no típico "isso não é comigo". Blake
vai atrás do benefício na previdência. Na entrevista lhe perguntam se pode
caminhar, se pode se expressar com clareza e se pode levantar e movimentar os
braços. Sua resposta é: "meu problema é no coração". Mas se você
consegue se mover e outras coisas mais, pode trabalhar. E se pode trabalhar,
deve requerer, na visão do Estado, o seguro desemprego. Ah mas tem laudo
médico? Então aguarde (sem uma data estipulada) que alguém ligará para agendar
uma revisão no seu pedido. Enquanto isso procure emprego e prove que você não é
um peso ao sistema. Não, esse filme não é um filme brasileiro. É inglês e mostra como
são tratados por lá aqueles que foram produtivos a vida inteira, mas se
confrontam com um estado falido em cuidar de seus cidadãos.
Mas
o filme não fica apenas em Daniel. Em paralelo temos Katie (Hayley Squires) uma
recém-chegada ao bairro, mãe solteira, com dois filhos pequenos que foi expulsa
pelo proprietário do antigo apartamento em que morava. Moraram dois anos em um
abrigo e agora ela tenta começar uma nova vida, conseguir emprego e cursar a
faculdade. Ela conhece Daniel e uma
verdadeira amizade surge com este tentando ajudar sua amiga e até fazer às
vezes de pai (e ainda bem que não foi feito em Hollywood, senão teríamos um relacionamento sentimental
no filme). Dois estranhos que se encontram praticamente na mesma situação: apenas
precisam de uma ajuda momentânea para garantirem suas dignidades. O senso de
dever moral e humano, de se ajudarem de alguma maneira, sobrepõem o
individualismo tão perene atualmente no coração das pessoas. Dois seres humanos
que apenas querem algo fundamental a todos: direito e dignidade.
E
as sutilezas desse diretor, de mais de 80 anos, com seu roteirista de longa
data, Paul Laverty, nos brinda com vários momentos emocionantes e reflexivos:
em um mundo cada vez mais digital, Daniel, um "analfabeto", nesse
novo mundo escuta: "Nós somos digitais por padrão!" e replica: "É?
Bem, eu sou lápis por padrão!", apesar de certo humor em algumas situações
há uma denúncia de um mundo frio que não
se importa com quem não se adapta ou se enquadra a ele. Daniel é tratado na agência com frieza,
indiferença e hostilidade disfarçada. Não concorda com algo? Registre sua
queixa em um número de telefone e aguarde uma resposta. Não concorda com essa
atitude? Bem, será convidado a deixar o local por atrapalhar o trabalho dos que
ali estão para lhe ajudar. Um Estado frio, com funcionários frios, que não
querem se envolver, ou não tem tempo, ou não se importam. Daniel é direcionado
a procurar emprego, fazer por conta própria um currículo no computador e provar
que está buscando emprego (mesmo proibido pela médica), para mostrar que não é
um sanguessuga atrás apenas de ganhar um benefício sem esforço.
A
performance dos atores é algo a se elogiar. O ator cômico Dave Johns, pouco
conhecido por aqui, oriundo da tv, em sua estreia no cinema, traz uma atuação soberba carregada de humor, frustração e
revolta que se identifica imediatamente com o espectador. Seu início irônico, kafkiano, quanto a
surreal situação em que se encontra, vai se transformando em incredulidade e sofrimento,
de acordo com que percebe que não tem mais forças nem saúde para enfrentar o
mais frio dos monstros: O Estado. Sua indignação se transforma em um ato, um
grito de socorro, para que o escutem. Hayley Squires é outra que traz momentos
marcantes, como na cena em que pega uma lata de feijão e leva à boca, diante do
desespero da fome. Sua Katie é uma mãe carinhosa, uma batalhadora que luta para
tentar dar os seus filhos dignidade. Não há como não sentir um aperto no
coração quando sua filha fala de bullying na escola por ter "roupas pobres", nem
quando toma uma atitude desesperadora
para dar comida aos filhos. O filme mostra que, mesmo nesse ambiente de insensibilidade,
há pessoas prontas a dar uma ajuda momentânea, como a assistente social que se
apieda da situação de Daniel e resolve ter uma iniciativa diante do caos
burocrático. Seu prêmio? O espectador descobrirá como um Estado desumano trata
aqueles que ainda são humanos. Para finalizar temos o ator Kema Sikazwe (como "China"), um afrodescendente, imigrante, que se insere em um tipo de empregabilidade: o famoso "contrato zero", um modelo onde os empregados não têm obrigação de cumprir um
determinado número de horas, mas devem estar disponíveis para quando a
empresa necessitar, cuja remuneração poderá ser boa ou extremamente desfavorável. Menos direitos e menos dinheiro.
Produção
britânico-franco-belga, ganhadora da Palma de Ouro em Cannes, "Eu, Daniel Blake" é um drama de dois
seres humanos com estórias de vidas diferentes que se encontram praticamente numa
mesma situação desesperadora diante de um abismo social. Um sensível painel de
uma sociedade que evolui tecnologicamente contra um Estado "pelo povo e
para o povo" (a grande ironia) que se torna um monstro frio auxiliado por
representantes frios.
Trailer:
Curiosidades:
O filme foi filmado em ordem cronológica. A atriz Hayley Squires não recebeu o roteiro inteiro para ler antes de filmar.
Na estreia de Cannes, Ken Loach e sua equipe foram recebidos com aplausos arrebatadores de 15 minutos após a exibição oficial.
O diretor Ken Loach é o mais velho vencedor da Palma de Ouro de todos os tempos. Quando venceu, no dia 22 de maio de 2016, ele tinha 79 anos.
Esta é a segunda Palma de Ouro de Ken Loach; ele ganhou seu primeiro em 2006 com "Ventos da Liberdade" (2006).
Incluído entre os "1001 filmes que você deve ver antes de morrer", editado por Steven Schneider.
Todas as
mulheres que trabalham para as agências públicas têm o mesmo corte de
cabelo: franja com um corte reto de comprimento médio.
A mulher que
ajudou a personagem de Hayley Squires, Katie, na tão discutida cena do
banco de alimentos, não era uma atriz - ela trabalhava no banco de
alimentos e não sabia o que iria acontecer na cena.
Principais Premiações em Festivais:
BAFTA Awards 2017
British Independent Film Awards 2016
Cannes Film Festival 2016
CinEuphoria Awards 2017
Denver International Film Festival 2016
Dublin Film Critics Circle Awards 2016
Empire Awards, UK 2017
European Film Awards 2016
Evening Standard British Film Awards 2017
Locarno International Film Festival 2016
New York Film Critics, Online 2016
San Sebastián International Film Festival 2016
Stockholm Film Festival 2016
Turia Awards 2017
Vancouver International Film Festival 2016
British Independent Film Awards 2016
Cannes Film Festival 2016
CinEuphoria Awards 2017
Denver International Film Festival 2016
Dublin Film Critics Circle Awards 2016
Empire Awards, UK 2017
European Film Awards 2016
Evening Standard British Film Awards 2017
Locarno International Film Festival 2016
New York Film Critics, Online 2016
San Sebastián International Film Festival 2016
Stockholm Film Festival 2016
Turia Awards 2017
Vancouver International Film Festival 2016
Fontes:
The Guardian
NY Times
O Globo
IMDB
IMDB
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