terça-feira, 7 de setembro de 2021

ILHA DAS FLORES / ISLAND OF FLOWERS (1987) - BRASIL

"LIBERDADE, ESSA PALAVRA / QUE O SONHO HUMANO ALIMENTA / QUE NÃO HÁ NINGUÉM QUE EXPLIQUE / E NINGUÉM QUE NÃO ENTENDA". CECILIA MEIRELES

Quem frequentou cinemas nos idos dos anos 70 e 80 sabe que nada era muito fácil, mas era muito nostálgico: tinha fila; tinha a obrigatória bilheteria e tinha um implacável fiscal na porta pra conferir a idade do cidadão. Se você não tivesse idade classificatória do filme, não entrava e não devolviam a entrada, você que tentasse vender pra outra pessoa, que normalmente não queria comprar. Tinha lanterninha pra achar lugar quando o filme já havia começado. Podia entrar no meio da sessão e tinha superlotação. E a funcionária avisava: somente sentado nas escadas (algo muito comum nos cinemas do Rio de Janeiro). Você entrava e, antes do filme, normalmente, havia o “Canal 100”, que mostrava lances dos grandes clássicos do futebol. Todo mundo assistia e ninguém brigava dentro do cinema. Tinha os trailers com as novidades e os folhetos fornecidos pelos cinemas com as “novidades” em um papel preto e branco. O Grupo Severiano Ribeiro emitia um bem legal, com os horários e cinemas disponíveis. Nada de internet, YouTube ou Google. Tudo isso consumia, às vezes, meia hora. Quase ninguém reclamava. Mas quando colocavam os curtas, tudo mudava: a plateia protestava, gritava,  xingava, pedia para acabar ... Alguns curtas eram um verdadeiro teste de paciência para o espectador: podiam durar 10 minutos ou quase meia-hora. O suplício parecia ser interminável.  Muitos mostravam uma câmera parada com uma pessoa narrando um fato ou mostrando seu ofício. Tinha mulher rendeira, cortador de cana, uma personalidade pouco conhecida... era apenas um exercício de filmar e poucos colhiam algum interesse do público como, por exemplo,  “Meow” (Marcos Magalhães, 1981).

O Ano era 1989, a Embrafilme dava seus últimos suspiros de decadência e sucumbiria em 16 de março de 1990, fechada pelo governo Fernando Collor. De 80 longas por ano (já vinha em queda de público), o cinema brasileiro passava a apresentar 4 a 5 produções anuais. Até os festivais tinham dificuldades de passar filmes. A “retomada” viria em 1995, na qual muitos consideram "Carlota Joaquina - A Princesa do Brasil" (de Carla Camurati) como o marco dessa retomada da produção nacional. Mas havia em 1989 um curta-metragem gaúcho que seria considerado uma obra-prima, um divisor de águas no gênero. Ganhador de 9 Kikitos no 17 festival de Gramado, “Ilhas das Flores”, de Jorge Furtado era um curta desafiador, amargamente irônico, instigante em 13 minutos de eficiência, criatividade e indignação, a partir de um raciocínio dialético que nos mostrava o absurdo daquela situação: seres humanos que, numa escala de prioridade, se encontram depois dos porcos.

Primeiro projeto filmado pela Casa de Cinema (reunião de quatro produtoras cinematográficas do sul), Ilha das Flores foi filmado na “Ilha dos Marinheiros”, as margens do Rio Guaíba, situada na periferia de Porto Alegre. O nome do título foi modificado para “Ilha das Flores” devido ao contraste que este lugar gera com um nome tão poético para o qual o lixo é enviado. A ideia surgiu quando Furtado foi convidado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul para fazer um vídeo didático sobre a melhor maneira de a população tratar o seu lixo. E o projeto surgiu a partir do disco enviado pela  Nasa para Plutão, com informações sobre a vida, hábitos e culturas do ser humano. O diretor resolveu narrar o curta como se fosse destinado a extraterrestres.


Em ritmo de videoclipe, se inicia com uma explicação científica, na voz do ator Paulo José (1937-2021) sobre a diferenciação entre humanos e tomates, passando em seguida  para uma visão do ciclo de consumo em que os tomates se inserem. A ágil montagem torna-o, de inicio, engraçado, irreverente... mas a narrativa vai sendo substituída por angustia e tensão, desarmando a plateia, para impacta-la ao final da projeção ao denunciar, de maneira contundente e corrosivamente irônica, a teoria do capitalismo, na qual o autor desenvolve ideias sobre a miséria humana. Revela-nos o caminho desse alimento da colheita ao supermercado, à cozinha de uma dona de casa, ao lixo. Antes, porém, o lixo é oferecido a porcos e aquilo que estes rejeitam pode, enfim, ser colhidos pelos seres humanos que ali habitam. Não há como assistir e permanecer indiferente. No final há um aclaramento sobre o conceito de liberdade através dos versos de o "Romanceiro da Inconfidência" de Cecilia Meireles.

Escrito em três dias, o roteiro se revela um ensaio dialético-cinematográfico, uma incisiva crítica social, devastadora e avassaladora, sobre a nossa sociedade moderna, narrado através da história de um tomate, onde os seres humanos entram na fila postrior aos porcos. Em 13 minutos, Furtado foge do convencional nos revelando mais sobre a humanidade do que muitas produções pretensamente construídas para isso. Em como a inteligência do ser humano (com seu cérebro telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor) serve pra criar grandes obras e em como este a utiliza conveniente para ignorar os infortúnios do próximo e deixá-lo em condições deploráveis. Será que a civilização humana possui realmente um cérebro telencéfalo altamente desenvolvido? O mais triste dessa história é que cada grupo só tinha apenas cinco minutos para recolher os restos, quase sempre estragados, para assim poder atender toda a demanda de pessoas.

Mistura híbrida de documentário e ficção (apesar de dizer não ser), expressa de forma ácida, na linha “a vida como ela é”, nos revela um sistema econômico desigual, onde, talvez o Brasil seja um dos países mais desiguais do globo terrestre. Uma complexa cadeia que envolve consumo, lucro, descarte, miséria e lixo. As muitas contradições das sociedades de consumo. O documentário inovou em termos de linguagem, ao antecipar, segundo seu criador, questões relacionadas à velocidade e ao hipertexto. Atemporal seria a palavra que melhor define este curta-metragem em um país onde mais da metade não tem certeza se irá realizar todas as refeições básicas no dia seguinte.

No Brasil, e em muitos lugares do mundo, existe várias “Ilha das Flores”, onde a única coisa que prospera é a fome. Não é sobre um lugar específico, mas sobre uma situação recorrente com caráter de quase permanência. E Deus existe, ao contrário do que é mostrado no início. É o frio espírito humano e sua indiferença para com o semelhante que permite um tratamento inumano para humanos. E uma pergunta permanece: houve comoção realmente por parte de nós seres humanos em modificar essa situação ou foi apenas uma indignação de algumas horas?


Curiosidades:

O curta encontra-se disponível no YouTube

A trilha sonora escolhida para compor a produção foi retirada da peça musical “O Guarani“, de Carlos Gomes, e é amplamente conhecido por ser a introdução da Voz do Brasil;

Eleito o Melhor Curta Brasileiro;

Nessa época ocorreu a Queda do Muro de Berlim (9 de novembro de 1989), sendo antecedido e sucedido pelo colapso dos governos alinhados à União Soviética;

Água luz encanada e recolhimento de lixo agora estão disponíveis;

De 2017 para 2018 65 mil gaúchos entraram para a extrema pobreza na qual a renda fica abaixo de 140 reais por mês;

Não há mais lixões tudo é encaminhado para Minas do Leão um aterro sanitário. Apesar do centro de triagem da ilha ter desativado, o material, hoje, é jogado na frente das casas. Conforme o G1 houve a implantação de um centro de assistência, posto de saúde, escolas, mas as Ilhas do Pavão e Marinheiros ainda possui o menor índice de desenvolvimento de Porto Alegre em termos de educação, renda e expectativa de vida;

  

Premiações:

Festival de Gramado: Melhor Filme (Jorge Furtado); Melhor Roteiro(Jorge Furtado); Melhor Montagem (Giba Assis Brasil) Melhor Filme do Júri Popular; Prêmio da Crítica e 4 prêmios regionais : Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro e Melhor Montagem

Urso de Prata no festival de Berlin 1990

Prêmio Air France como melhor curta brasileiro do ano, 1990.

Prêmio Margarida de Prata (CNBB), como Melhor Curta Brasileiro do ano, 1990.

Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, 1991.

Blue Ribbon Award" no American Film and Video Festival, New York, 1991.

Melhor Filme no 7º No-Budget Kurzfilmfestival, Hamburgo, Alemanha, 1991.

 

Ficha Técnica:

Argumento, Roteiro e Direção: Jorge Furtado

Narração: Paulo Jose

Direção de Produção: Nora Goulart

Direção de Arte: Fiapo Barth

Montagem: Giba Assis Brasil

Direção Musical: Geraldo Flach

Produção: Casa do Cinema

  

Cartazes:

 


Filmografia Parcial:

Jorge Furtado (Diretor)







Temporal (curta 1984); O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda (curta 1986); Barbosa (curta 1988);  Ilha das Flores (curta 1989);  Esta Não É a Sua Vida (curta 1991); Veja bem (curta 1994); Os Sete Sacramentos de Canudos (1996); Luna Caliente (minissérie 1999); A Invenção do Brasil  (minissérie 2000);  O Sanduíche (curta 2000);  Houve uma Vez Dois Verões (2002);  O Homem Que Copiava (2003); Saneamento Básico, O Filme (2007);  Homens de Bem (2011); Doce de Mãe (2012); Doce de Mãe (Minissérie 2014); Real Beleza (2015) Quem é Primavera das Neves (documentário); Rasga Coração (2018)


Paulo José (1937-2021)







O Padre e a Moça (1966); Todas as Mulheres do Mundo (1966); Edu, Coração de Ouro (1968); O Homem Nu (1968); Bebel, Garota Propaganda (1968); Véu de Noiva (novela 1969); Macunaíma (1969); Como Vai, Vai Bem? (1969); Assim na Terra Como no Céu (novela 1970-1971); O Primeiro Amor (novela 1972); Somos Todos do Jardim de Infância (1972); Shazan, Xerife & Cia (serie 1972-1973); Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972); O Preço de Cada Um (1973); Eles Não Usam Black-Tie (1981);  A Difícil Viagem (1983);  O Tempo e o Vento (1985); Armação Ilimitada (serie 1985); Roda de Fogo (novela 1986); Olho por Olho  (novela 1988); Faca de Dois Gumes (1989); Tieta (novela 1989); Dias Melhores Virão (1989); Ilhas das Flores (1989 - narração); A Grande Arte (1991); Araponga (novela 1990-1991); O Mapa da Mina (novela 1993); Explode Coração (novela 1995); Engraçadinha... Seus Amores e Seus Pecados (Minissérie 1995); Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1997); Anahy de las Misiones (1997); Era Uma Vez...(novela 1999); Outras Estórias (1999); Um Anjo Caiu do Céu (novela 2001); Dias de Nietzsche em Turim (2001); O Casal dos Olhos Doces (curta 2002); Morte. (curta 2002); O Homem Que Copiava (novela 2003); Apolônio Brasil, Campeão da Alegria (2003); O Vestido (2003); Como Fazer Um Filme de Amor (2004); Senhora do Destino (novela 2004); Saneamento Básico, O Filme (2007); Pequenas Histórias (2007); A Festa da Menina Morta (2008); Juventude (2008); Quincas Berro d'Água (2010); O Palhaço (2011); Meu País (2011); Em Família (novela 2014).


Fontes:

IMDB

Wikipedia

Jornal do Brasil

O Globo

Portal G1



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