O QUE FICOU PARA TRÁS / HIS HOUSE (2020) - REINO UNIDO

QUANDO O MUNDO REAL PODE SER MAIS ASSUTADOR QUE O SOBRENATURAL

Bol Majur (Sope Dirisu) e Rial Majur (Wunmi Mosaku) são refugiados do Sudão do Sul dilacerado pela guerra civil e atrocidades humanas.  O casal conseguiu, como tantos outros, uma fuga através do Mediterrâneo, que se mostrou uma viagem trágica, perdendo a filha Nyagak para o mar e indo parar na Grã-Bretanha que três meses depois lhes concede asilo, sob várias condições e impedimentos.  Bol e Rial recebem uma casa do governo, mas com o passar dos dias começam a observar estranhos acontecimentos dentro da casa, o que os leva a conjecturar que algo muito sombrio e perigoso pode tê-los acompanhando  de seu país até aquele local.

O escritor e diretor britânico Remi Weekes, em sua estreia em longas metragens,  nos brinda com um filme de terror / suspense, cujo grande mote é mostrar a situação daqueles que fugiram de uma morte eminente em seu país, com um sonho de segurança e a esperança de uma nova vida, para serem tratados como indesejados em uma nova pátria fechada e hostil.

Os enlutados Majur, depois de resgatados, permanecem meses em um centro de triagem (leia-se detenção) até serem recebidos e aceitos sob o status de refugiados. E a mensagem é clara: eles são hóspedes e estão sob uma espécie de fiança, ou seja, asilados provisoriamente. De imediato o casal é notificado pelo assistente social, Mark (Matt Smith): “seja um dos bons”, “não crie problemas”, "e não poderão trabalhar" (tirar emprego dos moradores?). Recebem 74 libras e uma casa em um conjunto habitacional na qual lhes é dito: “é maior que a minha”, num bairro pobre, onde sequer lhes é dito em que cidade estão. E a tal casa não está totalmente em condições: suja, fiação ruim, insetos e bagunçada. Com o avanço dos dias a casa parece ser assombrada (não sabemos dos antigos moradores), mas para quem vivenciou os verdadeiros horrores de que os homens são capazes, como eles podem realmente se assustar com ruídos e estranhas imagens que surgem durante a noite? Eles até pensam em sugerir uma mudança para outro lar (algo raro no filme do gênero na qual a pessoas sempre ficam nas casas mal-assombradas), mas Mark lhes insinua que podem dar a impressão que criarão problemas ao receberem um favor e retribuírem com reclamações. Não há jeito: é ficar na casa e encarar um espírito vingativo ou pedir para sair e enfrentar um sistema vingativo.

Apesar de estarmos em uma obra voltada ao fantástico o diretor mantém-se enraizado no mundo real o tempo todo, subvertendo nossas expectativas, algo raro nesse gênero. Há o intuito de apresentar o sobrenatural, sem dúvida, com momentos bem interessantes e que prendem o espectador que junto dos personagens começa a compreender o que realmente está acontecendo. E nesse ambiente vemos duas personalidades distintas aflorarem: Rial que começa a achar que voltar para sua terra talvez não seja tão ruim e Bol que fará de tudo para se adaptar a uma sociedade que não lhe deseja ali, apenas aguardando um deslize como brecha para “devolver o problema” que receberam inesperadamente.  Enquanto uma entidade assombra Bol, que adquire uma  firme posição de negar os fatos e esconder seus medos mais profundos, vemos Rial sofrer preconceitos de pessoas de sua própria cor: seus laços ancestrais podem ser os mesmos, mas não há identificação nenhuma daqueles que ali nasceram e que se consideram ingleses. Pessoas que nunca compreenderão sua dor e o que sacrificou para estar ali. Ela aceita o que parece ser a entidade, entende o que ela deseja e até esperava que isso fosse ocorrer. Mas qual o real motivo da casa desejar o mal, principalmente de Bol? Justamente quando pensávamos para onde o filme nos conduzia, há uma guinada inesperada que conduz o filme para outras percepções. Afinal, não sabemos muito da jornada dos Majur apenas através de alguns flashback. 

Distribuído pela Netflix, "O Que Ficou Para Trás" nos mostra a experiência dos imigrantes inseridos em um filme de terror. Se no campo fantástico o filme talvez não apresente nada de tão inovador, apesar de momentos inspirados com alguma eficiência gráfica, é no enraizado drama humano que o filme cresce, com personagens envoltos em uma camada de credibilidade aonde um dos momentos mais tensos do filme não envolve espíritos, mas fantasmas do passado, espectros que habitam em muitos. Não é um filme que agradará a todos, afinal aqueles que forem na expectativa de uma obra de puro suspense ou terror podem não gostar da abordagem social inserida, mas por ser algo diferente da mesmice atual já merece uma olhada. Ótimos atores, roteiro inspirado e um diretor a ser observado de perto.

Trailer:

Curiosidades:

Matt Smith fez o personagem Dr. Who entre 2010 e 2014

Cartaz:

Filmografia Parcial:

Sope Dirisu

The Mill (seriado 2014);  O Caçador e a Rainha do Gelo (2016); Mente Criminosa (2016); Castelo de Areia (2017); Coriolanus (2018); O Que Ficou Para Trás (2020); Gangs of London (2020); Silent Night (2021);  Mothering Sunday (2021)

Wunmi Mosaku

Honeymooner (2010);  Ventre (2010);  I Am Slave (2010); Stolen (2011); Citadel (2012); Philomena (2013); Don't Take My Baby (2015); Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016); Damilola, Our Loved Boy (2016); Animais Fantásticos e Onde Habitam (2016); Mission Control (2017); Macbeth (2018); Through the Gates (2018); Raízes do Amor (2019); O Que Ficou Para Trás (2020); Lovecraft Country (seriado 2020); Loki (seriado 2021)

Matt Smith

The Ruby in the Smoke (2006); Ventre (2010); Doctor Who (seriado 2010 - 2014); Rio Perdido (2014); O Exterminador do Futuro: Gênesis (2015); Orgulho e Preconceito e Zumbis (2016);The Crown (seriado 2016 -2017);  Paciente Zero: A Origem do Virus (2018); As Discípulas de Charles Manson (2018); Segredos Oficiais (2019); O Que Ficou Para Trás (2020); Lungs (2020); Last Night in Soho (2021); Morbius (2022); House of the Dragon (seriado 2022)