segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A LUTA DO SÉCULO (2017) - BRASIL

 “EU TENHO UM PROBLEMA GRAVE COM VOCÊ "

A ideia de “A Luta do Século”’ começou em um jantar onde se reuniram o diretor Sérgio Machado e os atores Lazaro Ramos e Wagner Moura (que juntos haviam feito Cidade Baixa de 2005). Os atores propuseram representar a saga do pernambucano Luciano Horácio "Todo Duro" Torres e do baiano Reginaldo "Hollyfield" da Silva de Andrade, dois pugilistas que nos anos 90 foram campeões e ídolos do Nordeste, mas que “só podia existir um” nos corações dos fãs. E a rivalidade entre a dupla foi ganhando espaço na mídia: antes de um confronto, os dois lutadores se digladiavam ao vivo em programas televisivos que hoje com o YouTube se tornaram memoráveis. Só que o diretor foi encontrando um material tão rico sobre a vida e o cotidiano desses personagens em um Brasil que não se importa com seus ídolos, que a ideia transmutou para um curta em 2010 e documentário em 2017. 

Se perguntarmos Brasil afora quem foi o boxeador mais famoso do Brasil, as respostas podem ser divididas em: Eder Jofre, “Maguila” e “Popó”. Mas, no Nordeste, “Todo Duro” e “Hollyfield” podem surgir no topo da preferência de muitos fãs. Para entendermos melhor precisamos saber que Maguila praticamente encerrava suas aspirações ao título em 1990 ao ser derrotado por George Foreman e, um ano antes, para Evander Hollyfield, e sem a parceria com a Lupi (empresa de Luciano do Vale) permaneceria lutando entre vitórias e derrotas, manutenção de cinturão e títulos até 2000 (fora campeão mundial em 1995 pela Federação Mundial de Boxe título que Evander Hollyfield também conquistou, aos 47 anos, em 2010, contra Frans Botha). Alguns podem até se lembrar do cubano Aurelio Toyo Perez, que pensaram em conceder a nacionalidade brasileira e transformá-lo em Campeão dos Pesos Pesados, mas tudo veio abaixo quando este enfrentou o campeão russo Nicolai Kulpin pela segunda vez (na primeira derrotara por pontos) sendo nocauteado no terceiro round e outros problemas que se seguiram. Havia um vácuo no boxe brasileiro e a dupla de supermédios “Todo Duro”, neto de cangaceiro e que trabalhou como jardineiro e segurança de boate durante a adolescência e “Hollyfield”, filho de lavadeira e que foi criado com sete irmãos surgiram em cena.  Ambos tinham títulos diversos e ambos competiam na mesma categoria. O confronto era inevitável.

A primeira luta, em 1993, foi de "Todo Duro", mas a imprensa e crítica considerou que vitória ou empate para "Hollyfield" seria o mais adequado.  Os dois seguiram seus caminhos. Em uma luta  "Hollyfield" tropeçou no adversário no ringue e quebrou a clavícula na queda perdendo o combate, enquanto isso "Todo Duro" assinava com a Band tendo suas lutas exibidas nacionalmente.  Cinco anos depois viria a revanche, em Salvador: "Todo Duro" perderia alegando que se sentira ameaçado pela ira da torcida. Seis meses depois os empresários marcariam nova luta em Salvador: novo clima de guerra, com a torcida tentando invadir o ringue e nova vitória de "Hollyfield".  Nessa época "Popó" “surgiria” ganhando o título mundial e popularidade nacional.  "Hollyfield" ia para confrontos com fracos oponentes e uma nova luta foi marcada em Recife, com vitória de "Todo Duro".  Na quinta luta, o baiano foi massacrado em Salvador, onde alegou ter sido dopado. O prestigio dos dois caiu. A sexta luta foi em Barreiras na Bahia e o resultado por pontos foi de "Hollyfield". Seis confrontos, três vitorias para cada lado.

Anos se passaram até que, durante a produção do documentário, surgiu uma nova proposta para os dois terem o desafio final e decidirem quem seria o melhor (parecendo até o filme “Ajuste de Contas” de Stallone e Robert De Niro). Esse tira-teima colheu um público de mais de cinco mil pessoas. Só que a proposta inicial do documentário de Sérgio Machado sobre dois lutadores que pararam, se transformou em dois pugilistas resolvendo suas diferenças em uma última luta. Só que o documentário ultrapassa as quatro cordas,  expande esse universo ao mostrar paralelos entre a vida desses pugilistas com a vida de muitos no Brasil. Os períodos de glória e declínio; as dificuldades que o brasileiro enfrenta para se dedicar ao esporte como a falta de apoio e de patrocínio; daqueles que procuram no boxe uma maneira de escapar da miséria, são mal assessorados e perdem quase tudo que conquistaram. Fala do boxe, fala do Brasil e de dois homens que se odeiam (?), mas que dependem um do outro para “existirem”. Quase uma tragédia grega. É o antagonismo do ”quem sou eu sem o meu inimigo?” O que seria de "Todo Duro" sem "Hollyfield" e vice-versa? Uma lendária rivalidade construída intencionalmente de dois lutadores que não podiam dividir o mesmo espaço sem se agredir ou fruto de uma espontaneidade e humildade que os tornam incrivelmente carismáticos?

O diretor mostra momentos tristes como a internação de "Hollyfield" (que o levou a um coma) após salvar os sobrinhos de um incêndio, que lhe deixaria sequelas nas mãos e em uma das pernas; sua transformação em evangélico, seu problema adquirido com a fala; a depressão de "Todo Duro" ao perder a esposa, sua vida simples ao lado da filha mais nova e amigos.  As partes divertidíssimas das brigas em coletivas, o jeito peculiar de se expressarem e as “sacadas” hilárias da qual os boxeadores lançavam um para o outro. E a constatação de que ambos ficaram famosos, mas hoje vivem humildemente, sem muitos recursos financeiros.  E como até hoje são reconhecidos imediatamente nas ruas de seus Estados.

Documentários costumam não agradar os espectadores brasileiros, mas “A Luta do Século" é realizado com uma eficiência que muitas vezes parece que estamos assistindo a um filme. Acerta em trazer uma história rica em elementos que nos alegra, que nos entristece e que nos leva à reflexão. Enquanto mostra a história de dois pugilistas, nos mostra também um pouco desse Brasil que não se importa com seu ídolos, mas que, acima de tudo, é a luta de ambos para manterem-se de pé.


Trailer:


Curiosidades:

Reginaldo "Hollyfield" nasceu em 9 de abril de 1966

Luciano "Todo Duro" nasceu em 1 de julho de 1965

"Todo Duro":  71 Lutas  / 58 Vitórias / 45 Nocautes /13 Derrotas / 0 Empates

"Hollyfield" :   49 Lutas / 42 Vitórias /  33 Nocautes /  7 Derrotas / 0  Empates

O campeão americano Evander Holyfield se sensibilizou ao saber da história do "xará" brasileiro, que ao cair em meio as chamas teve 35 % do corpo queimado, mas negou ajuda financeira.

"Hollyfield", ao longo dos anos apresentou um problema na fala, ficou viúvo, aprendeu  a ler, virou cristão e tentou se eleger para vereador mas não conseguiu

Cartaz:











Curta de 2010 - "Vou estraçaiá"



Hollyfield - A Última Luta:



A Última Luta de "Todo Duro" em 2019



Briga em entrevista (1998)





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